Cheiro da terra

Sérgio Buarque de Holanda e Oliveira Vianna são dois clássicos do pensamento social brasileiro freqüentemente tratados como autores de características opostas. Contudo, os conceitos de “cordialidade”, em Raízes do Brasil (publicado originalmente em 1936), e de “espírito do pré-capitalismo”, em História social da economia capitalista no Brasil (último livro do autor, escrito no fim da década de 1940 e publicado somente em 1987) ocupam uma posição que se pode chamar de equivalência estrutural nos dois livros. Assim, não se trata de minimizar as distinções entre os autores nem de admitir uma equivalência substantiva entre os conceitos. O fato é que ambos são construídos a partir de um diagnóstico sobre o Brasil que trabalha com um mesmo conjunto de elementos básicos e desembocam numa apreciação sobre “o homem brasileiro” surpreendentemente convergente.
Uma das razões que fazem de Raízes do Brasil um livro particularmente estimulante é o fato de não ser um texto fechado. Toda a análise do autor conflui para um dilema muito nítido, para o qual não se dá solução acabada. Este impasse, entretanto, não chega a ser trágico, uma vez que a análise nos acena com a possibilidade de transformar nossa própria dificuldade em vantagem. Já que ela não é um mal estrutural nem uma fatalidade insuperável, torna-se viável pensar e tentar uma saída que emerge como algo original e positivo. Este dilema pode ser percebido através do conceito de “cordialidade”, que não é tratado como uma essência própria, algo inato ao homem brasileiro, mas como uma “mentalidade”, ou seja, um produto cultural construído ao longo de nossa história. O “homem cordial” é o produto síntese da herança colonial portuguesa, responsável pela gestação de uma sociedade em que predominam relações sociais pessoalizadas, afetivas, particularistas e clientelistas. A cordialidade, que é nossa marca registrada, funciona ao mesmo tempo como um obstáculo e uma proteção. Obstáculo por bloquear a instauração de um verdadeiro espaço público democrático onde devem dominar relações sociais impessoais. Mas também uma proteção, pois pode evitar os excessos de uma sociedade moderna ultra-racionalizada, burocratizada e impessoal. É justamente um dilema como este que caracteriza História social, de Oliveira Vianna, e está sintetizado no conceito de espírito do pré-capitalismo. Ele traduz a convicção de que a superação total de uma “mentalidade” é impossível e transfigura uma condição de “atraso e inferioridade” em uma virtualidade capaz de apontar ao país um caminho específico que é, por isso, o mais adequado e melhor.  





Além disso, nos dois livros, ambos os conceitos são produzidos a partir de um diagnóstico histórico que tem como momento fundamental o processo de colonização. Tanto Sérgio como Oliveira Vianna (e muitos outros), ao realizarem um esforço para compreender a sociedade brasileira, partem da interrogação sobre a existência ou não de uma “mentalidade”, de uma “cultura nacional”. Se ela existe, suas características só poderão ser traçadas e compreendidas a partir da experiência da colonização portuguesa, o que os remete à ocupação territorial e às questões da grande propriedade e do trabalho escravo. O eixo básico de análise articula nossa tradição rural escravista com as nossas mais profundas formas de pensar e sentir social e politicamente. O tipo de “mentalidade”, de “cultura brasileira” – cordial, pré-capitalista – tem cheiro de terra, não ama o trabalho, obedece ao pai de família e nasceu em Portugal.




A análise de Sérgio Buarque sustenta que a cordialidade é uma realização da cultura ibérica. São as características desta cultura que permitem compreender a exploração colonial aqui estabelecida e, em decorrência, as características do ruralismo que marca a sociedade brasileira: a colônia é um projeto da metrópole. A transfiguração da cordialidade é, assim, a superação da herança portuguesa, abrindo portas para um novo e original caminho, americano, no dizer do autor. De forma sucinta, falar dessa herança é acentuar algumas características fundamentais para o conceito de cordialidade. Em primeiro lugar, na Península Ibérica se desenvolveu o que Sérgio Buarque chama de “cultura da personalidade”, uma forma radical de individualismo em que imperam os sentimentos de responsabilidade e dignidade pessoais. Essa forma de viver o individualismo suscitou desdobramentos importantes no que se refere, por exemplo, ao princípio hierárquico, que nunca chegou a ser impermeável e rigoroso na nobreza lusitana, produzindo uma sociedade caracterizada pela plasticidade e capaz de assimilar novas idéias (liberais-burguesas) sem transformar inteiramente seu tradicional modo de pensar e agir. Em segundo lugar, é devido a essa “cultura da personalidade”, que sustenta uma vivência específica do livre-arbítrio, que é tão difícil, entre os portugueses, o desenvolvimento de formas associativas que propiciem coesão entre diversos grupos da sociedade. É essa cultura, portanto, um dos grandes empecilhos ao “espírito de organização espontânea, tão característico de povos protestantes [...]”. O tema da autoridade, do Estado centralizado, é assim introduzido por força da ausência de formas de agregação social de outra natureza. De modo que, se o livre-arbítrio é um valor radical, qualquer atividade humana que implique submissão a uma lógica distinta da vontade individual é entendida como uma agressão. Esta é, para o autor, a raiz da “invencível repulsa” a toda moral fundada no trabalho, especialmente no manual e mecânico. É também um grande obstáculo para a construção de redes associativas que têm nas relações de interesses materiais uma razão fundamental.
Todas essas características tiveram influência decisiva no tipo de exploração colonial aqui desenvolvida, que seguiu a “ética da aventura”: uma ocupação do território que ignorou projetos de mais longo prazo. O ruralismo, que é a base do Brasil colonial, traduzido pela exploração da grande propriedade com escravos, origina-se dessa “ética da aventura”, que cultiva a audácia, mas também a imprevidência, a instabilidade e a ociosidade. A grande propriedade, autônoma e isolada, e a família colonial são o seu cerne. Como o modelo das relações sociais está centrado na autoridade patriarcal indisputada e pessoalizada, a solidariedade que existe ou que se nega passa pelos sentimentos. Dessa forma, há no Brasil um veto à lógica material de relações sociais, identificada como fria, interesseira e imoral. Aqui, por obra do legado colonial, vigora uma lógica simbólica, ou seja, uma cultura orientada por sentimentos pessoais e morais.
Para Oliveira Vianna, também foi devido ao ruralismo – à grande propriedade com trabalho escravo – que se desenvolveu no Brasil tanto uma ética de rejeição ao trabalho manual como um padrão de sociedade que absorve o homem na grande família e o isola da sociedade mais ampla. O domínio rural – amplo, disperso e isolado –, gerando auto-subsistência, obriga os homens “a viver por si mesmos, de si mesmos e para si mesmos”. Ele “simplifica” toda a nossa estrutura de vida econômica e social, fazendo com que, em nossa sociedade, nada nem ninguém – nenhuma instituição política ou autoridade pública – ampare o “cidadão”.  Só o grande senhor é capaz de exercer a função social de proteger e tutelar o homem do povo. O “espírito de clã” é, assim, um fato inevitável, produzindo um tipo de evolução histórica que tornou inexistentes ou inoperantes todas as instituições sociais.
Em História social, Oliveira Vianna retoma e desenvolve essa tese da ausência de formas associativas no Brasil, que tem suas origens nos tempos coloniais e o leva a questionar até a existência de uma “sociedade brasileira”. Por isso, neste livro, ele quer demonstrar como, no Brasil do século XX, ainda vigora em boa parte de nossas “populações regionais” o que vai chamar de “espírito do pré-capitalismo”. Para entender este conceito, ainda que de forma extremamente resumida, é importante lembrar que sua origem está no passado colonial rural: no latifúndio e na força de nossa aristocracia territorial. Se o grande domínio isola o homem, sendo o berço do “espírito de clã”, de uma ética de rejeição ao trabalho e do caudilhismo, ele é também o berço de relações sociais fundadas nos sentimentos que bloqueiam o frio espírito do lucro material e da “ambição sem limites”. Lentamente construída e refinada por séculos, essa “mentalidade” de nossa nobreza territorial emerge como um problema e, ao mesmo tempo, como uma vantagem. Isto porque no Brasil não se construiu uma subordinação maléfica dos interesses sociais e políticos aos interesses da riqueza material.
O espírito do pré-capitalismo, assim como a cordialidade, não é nem uma essência nem uma sobrevivência descartável ou “fora do lugar”. É um traço sociocultural profundo que se liga ao nosso passado colonial e que faz com que, no Brasil, não vigore um modelo de sociabilidade dominado por uma lógica material de interesses racional e impessoal.
As convergências entre os elementos básicos de análise em Sérgio Buarque e Oliveira Vianna não deixam de surpreender. Nenhum dos dois nos dá propriamente uma resposta, uma fórmula que permita resolver a tensão que suas análises produzem. Em ambos pode-se assinalar uma clara percepção de um processo de mudança social instalado no Brasil a partir de 1888, com a Abolição, que se intensifica com a Primeira Guerra e a Revolução de 1930. Um processo muito importante, mas que não é tão drástico nem tão violento. E essas características não o tornam menos desejável ou menos preocupante. O que fica claro é que, no Brasil, processos de transformação social têm sempre sólidos pontos de apoio em nossas mais profundas tradições culturais. Mas, a despeito de as análises dos dois autores conduzirem a pontos muito semelhantes – o que ilustra a fecundidade e a força das categorias com que trabalham e que marcam o campo intelectual de uma época (as décadas de 1910/1940) –, suas perspectivas permanecem distintas. Sérgio Buarque quer, fundamentalmente, compreender a sociedade brasileira; por isso vai às “raízes” culturais de nossa formação e acaba chegando à política. Oliveira Vianna quer, principalmente, organizar o “Brasil real”; para isso, precisa fundar sua reflexão política em uma análise histórico-sociológica, conforme modelo então vigente. Estes percursos não são casuais, e certamente esclarecem a maior margem de liberdade deixada por Sérgio Buarque e o misto de admiração e angústia provocado por Oliveira Vianna.     

Angela de Castro Gomes é professora e pesquisadora do CPDOC/FGV e professora titular da UFF, autora de “A dialética da tradição” (Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 12, 1990).

In: http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=160

Comentários

  1. Depois de ler este artigo percebi que o mundo, nós precisamos de lazer, a humanidade precisa disso e para ter esse lazer devemos ter um ócio, coisa que não estamos acostumados a ter coisa que é tida como de uma pessoa sem perspectiva de vida que não quer trabalhar. Na verdade há esse ócio mas poucos espaços de lazer, espaços que muitas vezes não são acessíveis a pessoas pobres que também possuem esse ócio ou seja há uma exclusão no lazer dessa sociedade globalizada sendo que poucos podem ter seu tempo de lazer porque é pouco acessível e que os pobres que também deveriam ter seu tempo de lazer acabam usando o tempo ocioso para coisas erradas, marginalidade. Tem que ter a ideia de que lazer é para todos e que é coisa do nosso cotidiano.
    DE: Wellington e Carlos Henrique

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