Destino impresso na cor da pele

Escravidão, que perdurou por quatro séculos, trouxe do continente africano para o Brasil uma gama enorme de etnias e cultura.
Marina de Mello e Souza


O tráfico de escravos, que perdurou por cerca de quatro séculos, unindo a Europa, a África e as Américas num imenso circuito comercial, ao mesmo tempo que plantou as condições para que o continente africano fosse reduzido a migalhas após o período do colonialismo europeu, permitiu a disseminação de elementos culturais que fertilizaram algumas culturas gestadas nas Américas. O Brasil, o Caribe e os Estados Unidos são as regiões que receberam com maior intensidade a influência dos povos africanos que habitavam as chamadas costa da Guiné e costa do Congo e Angola. Nessas regiões, com as quais os comerciantes portugueses, espanhóis, ingleses, franceses, holandeses, americanos e brasileiros comerciavam com os chefes locais - trocando tecidos, armas, bebidas e utensílios diversos, por marfim e principalmente escravos -, habitavam povos variados, falantes de línguas diferentes, com crenças e costumes próprios.





Nesse conjunto de povos, destaca-se o macro-grupo dos banto, que em levas migratórias iniciadas em torno de 1500 a.C. se espalharam da região do atual Camarões por quase toda a África Central e Oriental, dando origem a muitíssimas etnias como os bacongo, mbundo, jaga, tio, ovimbundo, cassanje, benguela, para ficar só entre alguns dos que foram traficados para as Américas. Menos estudados do que os povos da região então conhecida como Guiné, ou Costa da Mina, atualmente chamados genericamente de iorubás, ou jejês e nagôs, os banto, entre os africanos, foram os que deram a mais significativa contribuição cultural para o sudeste do Brasil.






Ao serem arrancados de suas aldeias e transportados pelo continente africano rumo às feiras regionais e aos portos costeiros, os escravos de diferentes etnias misturaram-se, aprenderam a se comunicar, criaram novos laços de sociabilidade, que se consolidaram durante os horrores da travessia atlântica, e se institucionalizaram no seio da sociedade escravista colonial, à qual foram inseridos à força, acabando por encontrar formas de integração. A transformação do africano em escravo e a mistura de etnias provocada pelo tráfico e pela organização da produção colonial, foram acompanhadas pela constituição de novas identidades, nas quais as características étnicas cederam lugar a novas formas de diferenciação.






O sentimento de alteridade relativo ao senhor branco era muito maior do que qualquer diferença entre crenças e hábitos de sociedades africanas, e pouco a pouco, os africanos e seus descendentes foram se reagrupando a partir de afinidades criadas na América, construindo identidades apoiadas em um passado ideal, comum a todos, no qual a terra natal era resgatada por meio de algumas feições gerais, criadas a partir da situação colonial. A África era então retomada de maneira mítica, ponto germinal de onde vinham os significados das coisas, já afastada de uma história concreta e inserida no universo onírico do mito.






Construindo um passado mítico, as comunidades negras na América Portuguesa afirmavam uma identidade forjada a partir do encontro das diferentes culturas africanas, da cultura ibérica e, em alguns casos, das culturas nativas, no contexto da sociedade escravista. Os calundus, candomblés e umbandas são exemplos de produtos culturais mestiços, para os quais convergiram contribuições africanas diversas, elementos do catolicismo popular e do universo indígena. Enquanto essas práticas tinham feições predominantemente africanas, e por isso mesmo eram mais reprimidas, as coroações de reis negros e as congadas eram aceitas no seio das irmandades de leigos, importantes espaços de integração dos africanos e seus descendentes no mundo colonial. Mas apesar de integradas ao catolicismo ensinado pelos senhores, as congadas também remetiam a uma África mítica, central na elaboração de uma dada identidade, de negros católicos.






Por ocasião das festas dos seus santos protetores, os irmãos negros elegiam reis e rainhas que desfilavam em cortejos carregando mantos, coroas e cetros, no que parecia ser um arremedo das cortes européias, mas na verdade remetia ao antigo reino do Congo, convertido ao cristianismo logo que os portugueses lá aportaram no final do século 15. Acompanhando a corte negra festiva, grupos de tocadores e dançadores, ao som de instrumentos, ritmos e passos africanos, traziam os ares das terras natais. Histórias passadas de guerras inter-tribais e da travessia do oceano eram lembradas ao lado de episódios do cotidiano de então. O ponto alto da festa era o embate entre os soldados do rei congo, cristão, e o exército de um reino pagão, que no final da dança se rendia e adotava o catolicismo. À primeira vista sinal irrefutável da submissão dos negros ao catolicismo e à dominação cultural dos senhores, as festas de reis negros também remetiam a uma África mítica, na qual o reino cristão do Congo era invocado como fonte de uma identidade que apesar de católica era africana, e banto.






Extremamente maleáveis, os grupos banto traficados para o Brasil incorporaram influências diversas, especialmente portuguesas, estando muitos de seus traços presentes numa cultura negra caipira espraiada por Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e pedaços de Pernambuco, Mato Grosso e Goiás, aparecendo ainda em muitas comunidades remanescentes de quilombos. Congadas, maracatus, jongos, sambas de umbigada, lundus, simpatias, mezinhas, rezas, umbandas, ritmos e dialetos negros, esculturas religiosas e profanas, são algumas das manifestações culturais de influência banto, que nos levam a prestar maior atenção a esses povos africanos que integraram a formação da cultura brasileira. Ao compreendermos esses processos históricos e formações culturais, estaremos caminhando em direção a uma maior igualdade entre as pessoas de diferentes matizes, que no Brasil trazem impressas na pele a sua origem social, somando-se este preconceito ao racial, para o qual a humanidade se divide entre civilizados e primitivos.






Marina de Mello e Souza é doutora em História pela UFF, com a tese, Reis negros no Brasil escravista: História, mito e identidade na festa de coroação de rei congo


In: http://jbonline.terra.com.br/destaques/500anos/id2ma4.html




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