As regras do jogo


                               O deputado Ulysses Guimarães e a Constituição Brasileira: novo marco político

O que, no Brasil, deveria ser tratado como política de Estado, ultrapassando, portanto, o período de quatro anos de um mandato presidencial, e o que poderia ser encarado como uma política de governo? Tanto no que se refere à política propriamente dita como à política pública, a resposta a esta questão requer explicitação complexa por envolver muitos fatores.

O primeiro é que a Constituição de 1988 já determina os princípios do que se poderia chamar de políticas de Estado. O artigo 3º explicita esses princípios, que devem ser seguidos por toda e qualquer política de governo. Entre esses princípios, está o da erradicação da pobreza e da marginalização e o da redução das desigualdades sociais e regionais, assim como a proibição de qualquer tipo de discriminação. No mesmo veio, o artigo 6º detalha os direitos sociais que se aplicam aos cidadãos, direitos esses que, uma vez regulamentados, se transformam em políticas públicas. Assim, constituem direitos dos cidadãos o acesso à educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.

No entanto, a explicitação constitucional de princípios e direitos requer regulamentação para sua efetiva implementação. Por isso, a partir de 1994, emendas constitucionais foram aprovadas regulamentando a política de educação e saúde, e a Lei Orgânica da Assistência Social regulamentou a política de seguridade social não contributiva, ou seja, aquela que visa “ao enfrentamento da pobreza, à garantia dos mínimos sociais e ao provimento de condições para atender contingências sociais”.


Isto posto, a pergunta que se segue é o que tornou possível transformar alguns direitos sociais constitucionalizados – saúde básica, educação fundamental e assistência monetária aos mais pobres – em políticas. Acredito que as razões foram de três ordens. Do lado da política, 1994 marca o início da estabilidade política, com os presidentes da República cumprindo integralmente seus mandatos, depois dos tumultuados anos iniciais da redemocratização. Do lado macroeconômico, 1994 também marca o início da política de ajuste fiscal, que permitiu o controle da até então indomável inflação brasileira. Marca também o crescimento da receita federal, o que permitiu bancar os custos financeiros desses três direitos sociais. Do lado institucional, os constituintes de 1988, que seguiram a tendência das constituições brasileiras desde a de 1934, de constitucionalizar inúmeras políticas públicas, tiveram a sabedoria de tornar as regras para emendar a Constituição relativamente fáceis de serem cumpridas, tanto em relação às constituições anteriores como em relação à maioria das constituições dos países democráticos. Portanto, razões de ordem política, financeira, macroeconômica e institucional tornaram possível a transformação de alguns direitos sociais em ações concretas. Isso significa que conceder o status de políticas de Estado a políticas de governo é não só desnecessário, dada a sua constitucionalização, como a efetiva implementação de políticas requer a combinação de muitas variáveis.

O segundo fator remete à ordem do sistema democrático. Isso porque, em situações ideais, políticas públicas constituem o estágio em que governos democraticamente eleitos traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações, que produzirão resultados no mundo real. Excluir da competição partidária, dos partidos e dos seus eleitores a prerrogativa de introduzir novas políticas quando seus candidatos são eleitos contradiz os princípios da ordem democrática competitiva.

O terceiro fator decorre tanto da natureza heterogênea do eleitorado como das limitações à atividade de governar países democráticos. Esse fator é particularmente importante porque as campanhas eleitorais nos países democráticos são desenvolvidas em torno de plataformas gerais e vagas. Isso se deve a dois fatores. O primeiro é que o poder do Executivo de aprovar políticas é limitado tanto por recursos financeiros como por depender da aprovação de inúmeros atores políticos e arenas institucionais. No caso brasileiro, a capacidade de um presidente eleito de propor políticas é dependente, muitas vezes, da aprovação do Congresso, muitas delas exigindo emenda constitucional. Se, como referido acima, o quórum para aprovar emendas à Constituição é relativamente baixo, ainda assim é exigido quórum qualificado, ou seja, aprovação de três quintos da Câmara e do Senado em duas rodadas de votações nominais. Dois exemplos recentes ilustram essa dificuldade. No Brasil, a proposta do Executivo para a distribuição dos royalties do pré-sal foi modificada na Câmara, apesar de o Executivo registrar alta taxa de sucesso na aprovação de suas propostas. Nos Estados Unidos, todos acompanhamos as idas e vindas e as delicadas negociações entre o presidente Barack Obama e o Congresso para aprovar a reforma da saúde. O segundo fator é que, em sociedades complexas e heterogêneas, como a brasileira e como a maioria das sociedades democráticas, os compromissos eleitorais dos candidatos a cargos majoritários – presidente, governadores e prefeitos – só podem ser assumidos por meio de promessas genéricas, capazes de não desagradar à maioria dos eleitores. Tal estratégia eleitoral é absolutamente racional, dado que (a) os políticos querem ser eleitos e não podem arriscar desagradar a parcela dos eleitores e (b) se não são amadores, sabem muito bem das restrições financeiras e políticas que limitam sua capacidade de assumir compromissos específicos no período de competição eleitoral.

O quarto fator remete à impossibilidade de construir consensos sobre quais seriam as políticas de Estado. A premissa para a existência de políticas de Estado, ou seja, de políticas que deveriam expressar a “vontade nacional”, o “bem comum” ou o “interesse geral”, é a de que elas expressariam os interesses de toda a sociedade e não os interesses de indivíduos ou grupos. Tal premissa não encontra abrigo na teoria política contemporânea e os estudiosos da ciência política encaram com ceticismo a possibilidade da existência de políticas que comportem tal premissa.

Mudanças inevitáveis O quinto fator decorre da natureza da política pública. Qualquer manual sobre elaboração de políticas públicas recomenda que, embora as políticas requeiram visão de longo prazo, elas devem ter caráter datado para que possam ser mudadas ou extintas quando o problema para o qual foram dirigidas tiver sido equacionado. Mudanças nas políticas são inevitáveis e ocorrem por várias razões, entre elas, como forma de adaptação a novas circunstâncias, por necessidade de corrigir a limitada capacidade do conhecimento humano, para remediar consequências inesperadas, para não perpetuar injustiças e para não engessar as demandas das gerações futuras. A despeito desse reconhecimento, várias pesquisas mostraram que as políticas, uma vez iniciadas, passam a ter grande sobrevida. A literatura da ciência política sobre políticas públicas tem demonstrado que políticas são caracterizadas por longos períodos de estabilidade, interrompidas apenas em momentos de turbulência, nos quais passam a ser suscetíveis a mudanças. Nesses momentos, a política pública assume novos objetivos, novas prioridades são definidas e novas coalizões políticas e burocráticas ganham força para sustentar as novas políticas.

No caso brasileiro, o Executivo e o Legislativo têm optado pela aprovação de políticas públicas com caráter datado. Isso pode ser demonstrado com o seguinte dado: das 27 emendas constitucionais que reformaram ou ampliaram as políticas públicas, mais da metade, ou seja, 16 (59%), tem vigência datada, total ou parcialmente. Entre essas políticas estão a da saúde, a da educação, o Fundo de Combate à Pobreza e a desvinculação de 20% das transferências da União para programas, setores e regiões. Por que isso ocorreu para além da presunção de que os formuladores dessas políticas tenham tido a intenção de seguir o que recomendam os manuais de políticas públicas? Por que o Legislativo não delegou ao Executivo, nem o Executivo propôs, a decisão sobre o tempo de duração de algumas políticas públicas, fazendo-as retornar ao debate nacional e à aprovação do Congresso periodicamente? A resposta a essas questões pode ser encontrada na existência de relativo consenso entre as elites políticas brasileiras a favor da revisão periódica das políticas públicas, até porque elas dependem da existência de recursos financeiros, humanos e institucionais das três esferas de governo para sustentá-las.

Por fim, a definição de políticas de Estado corre o risco de não só dificultar a adoção de novas políticas, como abrir espaço para a cristalização de interesses organizados, em geral em torno de demandas corporativas.

Por todas essas razões, acredito que a discussão em torno da adoção de políticas de Estado é não só desnecessária, como poderá afetar, de forma negativa, os alicerces da democracia brasileira e a adaptação das políticas a novas circunstâncias e demandas.

Celina Souza é Ph.D em ciência política pela London School of Economics and Political Science (LSE) e pesquisadora do Centro de Recursos Humanos (CRH) da Universidade Federal da Bahia

In: ESTADO DE MINAS. PENSARBRASIL. Sábado, 10 de julho de 2010, p. 18-19.

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