Bestializados ou Bilontras ?

José Murilo de Carvalho



O inicio do regime republicano no Brasil em final do século XIX desencadeou dentro do cenário nacional uma série de expectativas e anseios sobre o imaginário popular, principalmente, de qual seria o direcionamento deste novo regime e de como se daria a nova relação entre os cidadãos e o republicanismo.


No cerne desta temática, o capitulo V, do livro: os bestializados, do historiador José Murilo de Carvalho, traz a tona a emblemática de como se estabeleceram as relações entre a nova forma de governo e sua população, especificando exatamente em seus estudos a cidade do Rio de Janeiro, que naquele momento era a atual capital administrativa do regime republicano brasileiro.

Intitulado: Bestializados ou Bilontras (o mesmo de espertalhão, gozador),  aborda as visões ou expectativas geradas em torna do cidadão republicano brasileiro. Ao iniciar sua proposta de estudo, o autor lança de premissa que, ao se instaurar o sistema republicano criou-se inúmeras expectativas e anseios por parte dos intelectuais da época e das lideranças de uma certa elite republicana sobre a ação popular neste novo regime.  Também houveram aspirações dos líderes das alas operárias mais radicais para que esta população tivesse um vida política mais ativa com o novo Estado.

Neste momento, esperava-se da população brasileira a mesma reação que aconteceu em países europeus quando instauraram suas repúblicas, ou seja, que este povo agora tivesse consciência da possibilidade de sua ação política, formando partidos políticos, discuntido ideias sobre o gerenciamento do Estado e influenciando em suas decisões. Enfim, uma organização civil ativa que agisse diretamente no Estado e estabelecesse os direitos e os deveres neste novo tempo da sociedade brasileira.


Entretanto,  para a perplexidade de ambos a população carioca em sua boa parte, estava organizada através associações civis de caráter comunitário que não tinham entre seus interesses,  ações ou atividades que promovessem, por exemplo, formações de partidos políticos.  Ao contrário,  elas tinham fins de cooperação e assistencialismo para determinados grupos ou mesmo fins religiosos ou festivos, aliás ambos ao mesmo tempo.


Este posicionamento da maioria da sociedade carioca nos primórdios da república fez  muitos pensadores enxergarem a apatia política desta população, principalmente os membros das elites. Classificada pejorativamente, como: ignorantes, imbecis, e até de bestializados. Essa postura  das elites revelava descrença e desprezo pelo povo era fortalecida através das grandes festividades e arruaças que esta população promovia, misturando na festas religiosas elementos sagrados e profanos de diversas culturas, como por exemplo, o fado, o samba e a capoeira.

  Apesar da população se organizar de uma forma distinta dos modelos esperados pela elite e pelos movimentos operários mais anarquistas, este povo não estava alheio ao Estado, agiam e reivindicavam ações públicas do ponto de vista comunitário, como: arruamento, limpeza pública, transporte, como também exigiam retaliações contra as arbitrariedades e exploração de fiscais e funcionários públicos; porém,  essas exigências não se tratavam de queixas ao governo, mas sim de demonstrar aquilo que a população considerava legitimidade do Estado, não caindo aqui na tentação de achar que esta população queria uma intervenção mínima do Estado, ou seja, que fossem seguidores do liberalismo. Na verdade esta população se via como súditos do Estado, no qual necessitavam de sua presença, porém não se enxergavam ainda como agentes fundadores deste Estado e muito menos participativo dele como esperava os intelectuais políticos da época.


Buscando entender o porquê deste comportamento popular dentro da capital republicana naquele momento, o historiador, se lança de explicações teóricas possíveis de entendimento. Assim,  volta seus olhos para compreender como se deu a história das cidades em seu fenômeno urbano. Traçando um paralelo com o trabalho do sociólogo Marx Weber e com outros pensadores brasileiros, como Alberto Sales, o autor mostra que as cidades que historicamente foram oriundas das culturas ibéricas tenderam a integração, ao holismo, enfim, a valorizar o todo sobre o individual.  Estas cidades geralmente latinas americanas vão de contraponto com as cidades de gêneses nas culturas anglo-saxões que valorizam, o individualismo, a liberdade individual e o particular sobre o coletivo. A base do argumento weberiano se elucida que as regiões anglo-saxões e ibéricas foram cortadas por tendências teóricas distintas de cidades, na qual, enquanto uma por um bom tempo foi à fortaleza do catolicismo e da representação de uma sociedade nos princípios da hereditariedade, da nobreza e da monarquia.  As cidades herdeiras das culturas anglo-saxões absorveram com primazia as implicações ressonantes das reformas protestantes e da revolução cientifica, fatos que consolidavam os valores burgueses nas formações das mesmas.


Outra linha de explicação explanada pelo historiador trata-se das características das cidades latinos americanas, principalmente o Rio de Janeiro, formada no século XVI com o principio de ser um centro administrativo e político da colônia, porém será em 1808 com a chegada da corte portuguesa que a cidade se desenvolvera como cetro comercial do império ultramarino português, sendo base de passagem para o tráfico negreiro com a metrópole. Esta condição de corte e de centro político fez da cidade carioca e sua população quase que sua totalidade vivesse especificamente através dos cargos públicos e do comércio, não se formando uma atividade produtiva, como em são Paulo, Buenos Aires e Pernambuco.


Contudo,  essas duas vertentes não são capazes de explicar os traços e nem o imaginário desta população, principalmente, os seus pontos de vista do que era o republicanismo no Brasil.  Para José Murilo, o Rio de Janeiro dessa época havia se tornado um campo de força de ordens e desordens, de um lado,  uma elite preocupada com o estabelecimento de novas leis que regessem a ordem social; do outro, a tradição, o jeitinho, as espertezas e as ironias de uma população carioca que se amarrava em valores populares e que tinha suas próprias leis alheias à Constituição. Só se revoltavam quando o Estado tentava impor suas leis formais na base da repreensão, como na revolta da vacina, porém, logo era contornado.
Na verdade, o que existia era uma separação do real e do formal. A república não era levada a sério por esta população, representando uma mera formalidade, sendo motivos de muitas chacotas nos jornais contemporâneos da época, revelando aí a fragilidade deste regime em se consolidar como o consenso de sua população.  Portanto, o povo não era bestializado, mas sim um bilontra deste regime enfraquecido e sem consenso popular!


CARVALHO, José Murilo de,. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi . 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 196 p.

Comentários

  1. Parabéns!!! Sua leitura é coerente com a proposta apresentada pela obra.Sintetizou muito bem o livro. Abraços - Sidney

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