Caipira com estilo


As festividades juninas foram trazidas para o Brasil pelos portugueses no período colonial. A moda das quadrilhas sofreu influência ibérica, dos países nórdicos, Índia e da China
Lilian Monteiro


O Arraial de Belô mantém a tradição em Minas e estimula mais de 60 grupos em todas as regiões da capital


Vestidos coloridos, rodados, bordados, com aplicações e do melhor tecido. Nada de trapos rasgados, retalhos e remendos. A roupa de quadrilha, estigmatizada como a do caipira, na verdade teve origem nobre. Prova maior é que a festa Junina chegou ao Brasil, ainda colônia, por meio da família real. O baile da roça começou na Corte e chegou ao povo como forma de celebrar a colheita e a vida. Razões fortes para vestir a melhor peça do guarda-roupa. Vestidos de laços, flores, fitas, renda e estampas e homens em trajes completos, às vezes, com direito a coletes e gravatas. Bom motivo para falar da moda de quadrilha, ainda mais com o Arraiá de Belô celebrando a tradição, de 16 a 18, deste mês na Praça da Estação. Por isso, o caderno Feminino & Masculino decidiu desvendar a origem do figurino dessa contradança.


A professora de história da indumentária e coordenadora do curso de design de moda da Universidade Fumec, Gabriela Torres, foi quem pontuou referências interessantes. A começar pela chegada da família real: “Quando a Corte se muda para o Brasil, a colônia absorve novidades e impactos culturais, sociais e econômicos. Carrega o ansiedade e o desejo de comemoração e a perspectiva de realizar o paraíso na terra na sua maior colônia. As festas eram o subterfúgio da Corte para se fazer conhecida e se auto-homenagear. Para isso, ela traz todo o manancial da corte europeia: a dança, o beija-mão, um estilo de cabelo e a indumentária
. Ela passa a ser ditadora de tendências, o espelho. Surge a moda da contradança francesa, de onde origina a quadrilha, a dança em quadros, até com aspecto teatral”. Portanto, em vez de a festa junina ser apenas uma dança do povo, do capiau, na verdade tem origem na nobreza: “A diferença é que a relação urbano/rural na Colônia foi diferente do que a Corte tinha em Lisboa. No Brasil, é mais explícita e próxima”.


Outra coincidência relevante é que, como Portugal também colonizava o Oriente, houve o fator de deslumbramento com o trânsito de mercadorias e materiais que atravessavam o mundo. Assim, chegaram ao Brasil os tecidos coloridos e materiais diferentes da Índia. Já da África, instrumentos musicais, criando novos ritmos e sonoridades, e as modinhas lundus, que caracterizam nova interpretação da contradança e se popularizam, caíram no gosto por aqui. Gabriela reforça que tudo isso está na raiz da quadrilha. Em outro momento, a exportação do café e o período pré-Primeira Guerra, que cria onda migratória, com pessoas fugindo da fome de várias partes do mundo e aportando no Brasil. São levas de italianos, alemães e nórdicos somados a portugueses e africanos, que criam um caldeirão cultural: “Com eles chegam os festejos ao fim das colheitas pela dádiva de receber o alimento da terra.


A festa toma outro vulto. No Brasil, já havia festas religiosas aceitas por brancos, negros e índios, apesar das culturas distintas, mas impostas pela religião. Tudo isso é confluente. Para se ter ideia, do Golfo da Bengala (Índia) vem a camisa branca de madapolão (morim), o colete, da região da Bavária; a chita, de Alcobaça; os fogos de artifício e os balões, da China; o baile de roda da camponesa do Ribatejo; o traje à vianesa ou à lavradeira usado na região de Vianna do Castelo; a dança das fitas comum em Portugal e na Espanha. Antropologicamente, vai haver troca e adaptação”.


Gabriela conta que a popularização do tecido rústico, a chita e o chitão, ocorre com o boom têxtil no Brasil, a modernização das indústrias, a saída de cena do tear e o surgimento de grupos como Santana (BA), Mascarenhas (MG) e Bangu (RJ). Todos fiando algodão, que nasce fácil no país, ainda que menos nobre: “É bom destacar que tudo isso são recortes. Especulações, pesquisas e descobertas que são passíveis de revisões o tempo todo. Mas que se encaixam. E a moda acompanha todas essas mudanças e ciclos. A dança sai dos salões e vai para o campo com saias evasês, forro de organdi e bustos bordados, com aplicações de fitas, crochês e sobreposição. Alceu Pena chega a desenhar roupas de quadrilha em seu calendário, modelos também apropriadas para o twist”.


ANARRIÊ A professora ensina que a partir do século 20 começou outra caracterização: “A festa sobreviveu nas fazendas e nas cidades e aparece quase como uma troça, ainda que o brasileiro continue a gostar de dançar. É quando surge a flanela, a valorização do xadrez, a chegada do madras (tecido xadrez colorido, de origem indiana, do fim do século 19)”. Nesse período, a festa junina e a quadrilha passam a retratar os dançarinos como caipira, roceiro, desdentado, maltrapilho, remendado. Completamente diferente da sua origem.


Mas como tudo na moda é cíclico, Gabriela lembra que a partir da década de 1980 ocorre outra mudança de olhar: “É o momento da valorização da cultura brasileira, das raízes e do artesanato, agora adaptados ao gosto urbano. O olhar da cidade se transfere para o campo, a ponto de as quadrilhas relerem tudo o que foi falado até aqui. A opulência, o interesse em manter o aportuguesamento dos temas e até de se assenhorar da linguagem francesa. Como’ anavantur’ (em avant tout), ‘anarriê’ (em derrière) e ‘balancê’ (balancer). A linguagem gestual, das roupas, da fala se tornou brasileira com apoderamento autêntico. No século 21, a menina teen vai para a quadrilha de tailleur jeans com detalhes em chita. A peça, criada pela aluna Cláudia Tessari a partir de um workshop sobre desconstrução ministrado pelo designer Jum Nakao, é realidade. Uma interpretação puramente contemporânea”.


E viva São João, Santo Antônio e São Pedro. O importante é que, para valorizar e manter vivas as tradições juninas, a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, com o Arraial de Belô, estimula os mais de 60 grupos de quadrilha em todas as regiões da cidade. O evento tem potencial de resgate da identidade histórica e cultural da população brasileira, além de proporcionar diversão e lazer aos belo-horizontinos e turistas. Uai, sô! A hora é de diversão, com damas e cavalheiros na melhor beca.

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