Dentro e fora de casa


Período eleitoral tem como um de seus elementos fortes a discussão do legado do governo Lula e a perspectiva de perenização de algumas de suas políticas públicas



Famílias brasileiras atendidas pelo Bolsa Família dão respaldo popular aos projetos da área federal

Definidas as candidaturas para a corrida eleitoral visando à sucessão do presidente Lula da Silva, assumiram centralidade nos debates não apenas o perfil dos candidatos e as coligações partidárias, mas também o legado dos dois mandatos do atual presidente e o futuro das políticas públicas em desenvolvimento. Dada a notável popularidade do presidente e reconhecendo o peso que os elevados níveis de aprovação de sua gestão têm na disputa, em um contexto de vigorosa recuperação econômica do país, os postulantes ao cargo têm procurado, naturalmente, se definir mais como “pós-Lula” do que como “anti-Lula”.

Mesmo nesse contexto, contudo, em que inúmeros outros fatores, de ordem doméstica e internacional, têm reduzido a capacidade de autonomia dos Estados Nacionais e tornado mais semelhantes os planos de governo dos distintos partidos, torna-se imperiosa a diferenciação entre as plataformas, e não apenas entre os candidatos. Como se sabe, nas democracias os ciclos eleitorais, por definição, implicam a possibilidade de ruptura e descontinuidade na atuação estatal, e não somente de rotatividade nos cargos. Por isso parece mais relevante, nesses momentos, a distinção entre política de governo e política de Estado. Uma breve apreciação das políticas externa e social implementadas na gestão Lula pode nos proporcionar uma ilustração interessante da problemática da perenidade das políticas públicas nos regimes democráticos.

O contraste entre a atuação do atual governo na área social e no cenário internacional parece-nos ilustrativo, porque é possível argumentar que as políticas nesses dois campos teriam trilhado caminhos aparentemente opostos. Isso porque, no campo social, o governo ensaiou transformar algumas de suas iniciativas em política de Estado, ao propor a adoção de uma Consolidação das Leis Sociais, ao passo que, no âmbito da política externa, tradicionalmente vista no país como uma política de Estado, têm sido frequentes as críticas de que o governo Lula teria promovido uma excessiva partidarização e/ou ideologização da atuação internacional do país. Antes de desenvolvermos o argumento, contudo, tratemos de conceituar, muito brevemente, política de Estado e política de governo.


Uma política de Estado é muitas vezes pensada como aquela que, ao expressar o sempre elusivo e muitas vezes controvertido “interesse nacional”, estaria, por artifício jurídico ou em função do respaldo societário de que desfruta, blindada das naturais vicissitudes dos ciclos eleitorais. Uma política de Estado gozaria, assim, de maior estabilidade quando comparada a uma política de governo, que, por ser fruto de interesses circunstanciais ou resposta a problemas tópicos, seria necessariamente temporária ou expressaria interesses setoriais ou particularistas.

A fragilidade da distinção, contudo, pode ser evidenciada de muitas maneiras. É possível argumentar que, nos regimes democráticos, qualquer política adotada pelo governo do dia deva ser considerada como política de Estado, uma vez que o próprio processo eleitoral legitimaria nacionalmente as opções do mandatário, até porque as ações do Executivo normalmente demandam alguma forma de aval do Legislativo.

Outra forma de evidenciarmos quão problemática pode ser a distinção é recordarmos que mesmo objetivos majoritariamente percebidos como relevantes ou atemporais podem ser perseguidos de distintas maneiras. Exemplos seriam, nas duas áreas que serão discutidas abaixo, a superação da pobreza e a instrumentalização da política externa para a sustentação do desenvolvimento nacional. No caso da primeira, os instrumentos poderiam ser, por exemplo, a transferência direta de renda para os segmentos sociais mais vulneráveis ou a desoneração do setor produtivo, para que sejam ampliados os postos de trabalho. No caso da transformação da política externa em instrumento do desenvolvimento nacional, é possível perseguir esse objetivo tanto pela fidelização do país aos seus parceiros tradicionais quanto pela busca de abertura de novos mercados. Claro está, porém, que esses meios não precisam ser vistos, necessariamente, como mutuamente excludentes.

Feita e problematizada a distinção conceitual, de maneira inevitavelmente sintética, passemos à nossa apreciação do modo como a disjuntiva política de Estado versus política de governo pode ser vista a partir da comparação entre a atuação do governo Lula no campo social e na seara internacional. Isso para que possamos compreender melhor as políticas públicas como parte do jogo político, ou seja, as políticas como Política, e para recordarmos que um certo grau de instabilidade e de incerteza é inerente à própria democracia.

Direitos sociais Beneficiando atualmente algo em torno de 13 milhões de famílias, o Programa Bolsa Família (PBF), criado em 2003, é amplamente percebido hoje como responsável por parte significativa do enorme respaldo popular de que desfruta a administração Lula. O PBF é também reconhecido por seu papel na dinamização da economia nacional e por ser em parte responsável pela manutenção da demanda agregada doméstica, que teria contribuído para que, ao fim e ao cabo, a crise financeira internacional viesse mesmo a ser pouco mais que uma “marolinha” para o Brasil. Ainda que o combate à pobreza seja preceito constitucional e que as iniciativas de transferência direta de renda para os segmentos mais vulneráveis da população, no plano federal, antecedam a ascensão do PT ao Palácio do Planalto, parece inegável que a “paternidade” do PBF rende ao atual presidente importantes dividendos políticos.

Pensando em perenizar o programa, bem como outras iniciativas de sua administração, como as Conferências Nacionais, o Farmácia Popular e a garantia de aumento do salário mínimo acima da inflação, entre outras, em setembro de 2009 o presidente propôs a Consolidação das Leis Sociais (CLS), aos moldes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), lançada por Getúlio Vargas no início da década de 1940. Nas palavras de Lula, “será uma consolidação das políticas públicas para sustentar os avanços conquistados”, para “transformar em política de Estado”. A ideia era reunir e fixar regras, em um único corpo legal, para a maioria das iniciativas do governo no plano social, assegurando os recursos para o desenvolvimento das políticas e o reajuste dos benefícios.

Se as políticas sociais e a garantia dos direitos sociais podem ser pensadas como demandando estabilidade jurídica, fato é que nem mesmo a constitucionalização de objetivos gerais e de políticas específicas é garantia plena de sua perenização. Como bem demonstrado pela trajetória de construção do sistema brasileiro de proteção social após a Constituição Federal de 1988, há inúmeras formas de negação, protelação e manipulação, legais, políticas e administrativas, no processo de concretização dos preceitos legais. Mas, se a eventual criação de uma Consolidação das Leis Sociais poderia contribuir, no médio prazo, para uma salutar despersonalização das políticas sociais, ela também implicaria, no curto prazo, uma mais clara vinculação da atual administração com as políticas em curso.

No caso específico do Bolsa Família, o que se constata até o momento é que nenhum candidato admitiu publicamente a possibilidade de interrupção do programa. Ou seja, o próprio impacto do PBF parece, no atual contexto, ter o potencial de garantir a sua sustentabilidade no tempo e a sua invulnerabilidade ao ciclo eleitoral. Por outro lado, parece claro, também, que qualquer curso de ação estatal pode ser marginalizado sem que o seu fim seja proclamado oficialmente. Talvez se possa mesmo sugerir que, quanto mais personificada for a ação governamental, maiores as possibilidades de que ela seja descontinuada ou alterada no caso de uma vitória eleitoral da oposição.

Politização diplomática No que diz respeito à atual política externa, ela também tributária, em muitos aspectos, de gestões anteriores, e a seu modo fiel a determinados preceitos constitucionais, como a busca da integração latino-americana, os críticos têm vociferado acerca da sua suposta partidarização ou ideologização. Isso porque, até recentemente, a atuação internacional do país foi, em ampla medida, monopolizada pelo Itamaraty. Insulado pelo modelo de desenvolvimento por substituição de importações, por sua conformação geográfica e por seu posicionamento geopolítico marginal, o país tem, ainda, a sua atuação internacional sob a responsabilidade de uma corporação diplomática altamente profissionalizada. Esses fatores sem dúvida contribuíram para a baixa politização da política externa brasileira.


Contudo, com a redemocratização do país e com a mudança no seu paradigma de inserção internacional, sendo intensificadas as suas relações exteriores, a partir do início da década de 1990, a política externa passa a produzir significativos impactos distributivos no âmbito doméstico, assumindo, gradualmente, lugar de grande centralidade na agenda pública. O fato de tanto FHC como Lula terem promovido uma intensa presidencialização da política externa reforçou a tendência de pluralização do processo de produção de tal política. Essa politização da política externa brasileira foi acentuada pela clara contraposição entre os projetos tucano e petista de inserção internacional do país. É importante destacar que, no governo Lula, a tarefa de formulação da política externa passa a ser mais evidentemente compartilhada entre o Itamaraty e a Presidência, que conta, inclusive, com um assessor internacional que havia cumprido função semelhante no PT.

O fato de, sob Lula, o viés político da atuação internacional do país ter pelo menos se equiparado, em termos de importância e visibilidade, à sua vertente econômica e comercial demandou a definição de uma nova estratégia, tanto no plano regional como no multilateral. O notável ativismo internacional do país, nos mais variados âmbitos, tem se estruturado em torno de uma postura dita solidária ou humanista, a qual tem produzido profundas divergências, no plano doméstico, acerca de uma suposta negligência do “interesse nacional”. Segundo os críticos, esta seria uma política externa do PT e não do Brasil.

Assim, determinadas atitudes, como a tímida reação brasileira à nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia, o papel desempenhado pelo país no golpe hondurenho e a aproximação com o Irã, entre outras, passaram a ser criticadas por serem, supostamente, reflexo da partidarização e ideologização da política externa. Uma política de Estado, desenvolvida de maneira coerente e sustentada no tempo por uma corporação diplomática de competência reconhecida, estaria sendo conspurcada. Mesmo que o impacto dessas iniciativas, de difícil mensuração, possa ser pensado como positivo e como capaz de viabilizar antigas aspirações das elites brasileiras, de que o país cumpra um papel de destaque na construção da ordem internacional, o engajamento pessoal de Lula em muitas delas trouxe à tona, também, o temor de que esse ativismo, inédito em muitos aspectos, estivesse a serviço não apenas de um programa partidário, mas também de interesses pessoais do próprio presidente.

Em momentos de disputa eleitoral, políticas de Estado, inovações introduzidas pelos governos, legados políticos e espólios de ex-presidentes são embaralhados no jogo, cada vez mais midiático, de apresentação de planos de governo, talhados sob medida pelas pesquisas de opinião, e de definição de rótulos e estigmas para os postulantes. Na atual corrida presidencial, as políticas social e externa, que em muitos aspectos sofreram profundas inflexões durante a gestão Lula, continuarão sendo, inevitavelmente, debatidas com base nos problemáticos conceitos de política de Estado e política de governo. Isso nos faz recordar que as políticas públicas, mesmo pautadas constitucionalmente e muitas vezes definidas segundo critérios eminentemente técnicos, são, sempre foram e continuarão sendo parte inescapável do jogo político. E isso atualiza a antiga máxima segundo a qual, para sermos democráticos, devemos, se não amar a incerteza, pelo menos saber conviver com ela.

Carlos Aurélio Pimenta de Faria é doutor
em ciência política pelo Iuperj e professor
da PUC Minas (carlosf@pucminas.br)
In: ESTADO DE MINAS. PENSARBRASIL. Sábado, 10 de julho de 2010, p. 14-15



Edesio Ferreira/EM/D.A Press

Famílias brasileiras atendidas pelo Bolsa Família dão respaldo popular aos projetos da área federal

Definidas as candidaturas para a corrida eleitoral visando à sucessão do presidente Lula da Silva, assumiram centralidade nos debates não apenas o perfil dos candidatos e as coligações partidárias, mas também o legado dos dois mandatos do atual presidente e o futuro das políticas públicas em desenvolvimento. Dada a notável popularidade do presidente e reconhecendo o peso que os elevados níveis de aprovação de sua gestão têm na disputa, em um contexto de vigorosa recuperação econômica do país, os postulantes ao cargo têm procurado, naturalmente, se definir mais como “pós-Lula” do que como “anti-Lula”.

Mesmo nesse contexto, contudo, em que inúmeros outros fatores, de ordem doméstica e internacional, têm reduzido a capacidade de autonomia dos Estados Nacionais e tornado mais semelhantes os planos de governo dos distintos partidos, torna-se imperiosa a diferenciação entre as plataformas, e não apenas entre os candidatos. Como se sabe, nas democracias os ciclos eleitorais, por definição, implicam a possibilidade de ruptura e descontinuidade na atuação estatal, e não somente de rotatividade nos cargos. Por isso parece mais relevante, nesses momentos, a distinção entre política de governo e política de Estado. Uma breve apreciação das políticas externa e social implementadas na gestão Lula pode nos proporcionar uma ilustração interessante da problemática da perenidade das políticas públicas nos regimes democráticos.

O contraste entre a atuação do atual governo na área social e no cenário internacional parece-nos ilustrativo, porque é possível argumentar que as políticas nesses dois campos teriam trilhado caminhos aparentemente opostos. Isso porque, no campo social, o governo ensaiou transformar algumas de suas iniciativas em política de Estado, ao propor a adoção de uma Consolidação das Leis Sociais, ao passo que, no âmbito da política externa, tradicionalmente vista no país como uma política de Estado, têm sido frequentes as críticas de que o governo Lula teria promovido uma excessiva partidarização e/ou ideologização da atuação internacional do país. Antes de desenvolvermos o argumento, contudo, tratemos de conceituar, muito brevemente, política de Estado e política de governo.

Uma política de Estado é muitas vezes pensada como aquela que, ao expressar o sempre elusivo e muitas vezes controvertido “interesse nacional”, estaria, por artifício jurídico ou em função do respaldo societário de que desfruta, blindada das naturais vicissitudes dos ciclos eleitorais. Uma política de Estado gozaria, assim, de maior estabilidade quando comparada a uma política de governo, que, por ser fruto de interesses circunstanciais ou resposta a problemas tópicos, seria necessariamente temporária ou expressaria interesses setoriais ou particularistas.

A fragilidade da distinção, contudo, pode ser evidenciada de muitas maneiras. É possível argumentar que, nos regimes democráticos, qualquer política adotada pelo governo do dia deva ser considerada como política de Estado, uma vez que o próprio processo eleitoral legitimaria nacionalmente as opções do mandatário, até porque as ações do Executivo normalmente demandam alguma forma de aval do Legislativo.

Outra forma de evidenciarmos quão problemática pode ser a distinção é recordarmos que mesmo objetivos majoritariamente percebidos como relevantes ou atemporais podem ser perseguidos de distintas maneiras. Exemplos seriam, nas duas áreas que serão discutidas abaixo, a superação da pobreza e a instrumentalização da política externa para a sustentação do desenvolvimento nacional. No caso da primeira, os instrumentos poderiam ser, por exemplo, a transferência direta de renda para os segmentos sociais mais vulneráveis ou a desoneração do setor produtivo, para que sejam ampliados os postos de trabalho. No caso da transformação da política externa em instrumento do desenvolvimento nacional, é possível perseguir esse objetivo tanto pela fidelização do país aos seus parceiros tradicionais quanto pela busca de abertura de novos mercados. Claro está, porém, que esses meios não precisam ser vistos, necessariamente, como mutuamente excludentes.

Feita e problematizada a distinção conceitual, de maneira inevitavelmente sintética, passemos à nossa apreciação do modo como a disjuntiva política de Estado versus política de governo pode ser vista a partir da comparação entre a atuação do governo Lula no campo social e na seara internacional. Isso para que possamos compreender melhor as políticas públicas como parte do jogo político, ou seja, as políticas como Política, e para recordarmos que um certo grau de instabilidade e de incerteza é inerente à própria democracia.

Direitos sociais Beneficiando atualmente algo em torno de 13 milhões de famílias, o Programa Bolsa Família (PBF), criado em 2003, é amplamente percebido hoje como responsável por parte significativa do enorme respaldo popular de que desfruta a administração Lula. O PBF é também reconhecido por seu papel na dinamização da economia nacional e por ser em parte responsável pela manutenção da demanda agregada doméstica, que teria contribuído para que, ao fim e ao cabo, a crise financeira internacional viesse mesmo a ser pouco mais que uma “marolinha” para o Brasil. Ainda que o combate à pobreza seja preceito constitucional e que as iniciativas de transferência direta de renda para os segmentos mais vulneráveis da população, no plano federal, antecedam a ascensão do PT ao Palácio do Planalto, parece inegável que a “paternidade” do PBF rende ao atual presidente importantes dividendos políticos.

Pensando em perenizar o programa, bem como outras iniciativas de sua administração, como as Conferências Nacionais, o Farmácia Popular e a garantia de aumento do salário mínimo acima da inflação, entre outras, em setembro de 2009 o presidente propôs a Consolidação das Leis Sociais (CLS), aos moldes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), lançada por Getúlio Vargas no início da década de 1940. Nas palavras de Lula, “será uma consolidação das políticas públicas para sustentar os avanços conquistados”, para “transformar em política de Estado”. A ideia era reunir e fixar regras, em um único corpo legal, para a maioria das iniciativas do governo no plano social, assegurando os recursos para o desenvolvimento das políticas e o reajuste dos benefícios.

Se as políticas sociais e a garantia dos direitos sociais podem ser pensadas como demandando estabilidade jurídica, fato é que nem mesmo a constitucionalização de objetivos gerais e de políticas específicas é garantia plena de sua perenização. Como bem demonstrado pela trajetória de construção do sistema brasileiro de proteção social após a Constituição Federal de 1988, há inúmeras formas de negação, protelação e manipulação, legais, políticas e administrativas, no processo de concretização dos preceitos legais. Mas, se a eventual criação de uma Consolidação das Leis Sociais poderia contribuir, no médio prazo, para uma salutar despersonalização das políticas sociais, ela também implicaria, no curto prazo, uma mais clara vinculação da atual administração com as políticas em curso.

No caso específico do Bolsa Família, o que se constata até o momento é que nenhum candidato admitiu publicamente a possibilidade de interrupção do programa. Ou seja, o próprio impacto do PBF parece, no atual contexto, ter o potencial de garantir a sua sustentabilidade no tempo e a sua invulnerabilidade ao ciclo eleitoral. Por outro lado, parece claro, também, que qualquer curso de ação estatal pode ser marginalizado sem que o seu fim seja proclamado oficialmente. Talvez se possa mesmo sugerir que, quanto mais personificada for a ação governamental, maiores as possibilidades de que ela seja descontinuada ou alterada no caso de uma vitória eleitoral da oposição.

Politização diplomática No que diz respeito à atual política externa, ela também tributária, em muitos aspectos, de gestões anteriores, e a seu modo fiel a determinados preceitos constitucionais, como a busca da integração latino-americana, os críticos têm vociferado acerca da sua suposta partidarização ou ideologização. Isso porque, até recentemente, a atuação internacional do país foi, em ampla medida, monopolizada pelo Itamaraty. Insulado pelo modelo de desenvolvimento por substituição de importações, por sua conformação geográfica e por seu posicionamento geopolítico marginal, o país tem, ainda, a sua atuação internacional sob a responsabilidade de uma corporação diplomática altamente profissionalizada. Esses fatores sem dúvida contribuíram para a baixa politização da política externa brasileira.
Ricardo Moraes/Reuters

O ministro Celso Amorim: o Brasil em novo estágio no concerto das nações ou politização da diplomacia?


Contudo, com a redemocratização do país e com a mudança no seu paradigma de inserção internacional, sendo intensificadas as suas relações exteriores, a partir do início da década de 1990, a política externa passa a produzir significativos impactos distributivos no âmbito doméstico, assumindo, gradualmente, lugar de grande centralidade na agenda pública. O fato de tanto FHC como Lula terem promovido uma intensa presidencialização da política externa reforçou a tendência de pluralização do processo de produção de tal política. Essa politização da política externa brasileira foi acentuada pela clara contraposição entre os projetos tucano e petista de inserção internacional do país. É importante destacar que, no governo Lula, a tarefa de formulação da política externa passa a ser mais evidentemente compartilhada entre o Itamaraty e a Presidência, que conta, inclusive, com um assessor internacional que havia cumprido função semelhante no PT.

O fato de, sob Lula, o viés político da atuação internacional do país ter pelo menos se equiparado, em termos de importância e visibilidade, à sua vertente econômica e comercial demandou a definição de uma nova estratégia, tanto no plano regional como no multilateral. O notável ativismo internacional do país, nos mais variados âmbitos, tem se estruturado em torno de uma postura dita solidária ou humanista, a qual tem produzido profundas divergências, no plano doméstico, acerca de uma suposta negligência do “interesse nacional”. Segundo os críticos, esta seria uma política externa do PT e não do Brasil.

Assim, determinadas atitudes, como a tímida reação brasileira à nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia, o papel desempenhado pelo país no golpe hondurenho e a aproximação com o Irã, entre outras, passaram a ser criticadas por serem, supostamente, reflexo da partidarização e ideologização da política externa. Uma política de Estado, desenvolvida de maneira coerente e sustentada no tempo por uma corporação diplomática de competência reconhecida, estaria sendo conspurcada. Mesmo que o impacto dessas iniciativas, de difícil mensuração, possa ser pensado como positivo e como capaz de viabilizar antigas aspirações das elites brasileiras, de que o país cumpra um papel de destaque na construção da ordem internacional, o engajamento pessoal de Lula em muitas delas trouxe à tona, também, o temor de que esse ativismo, inédito em muitos aspectos, estivesse a serviço não apenas de um programa partidário, mas também de interesses pessoais do próprio presidente.

Em momentos de disputa eleitoral, políticas de Estado, inovações introduzidas pelos governos, legados políticos e espólios de ex-presidentes são embaralhados no jogo, cada vez mais midiático, de apresentação de planos de governo, talhados sob medida pelas pesquisas de opinião, e de definição de rótulos e estigmas para os postulantes. Na atual corrida presidencial, as políticas social e externa, que em muitos aspectos sofreram profundas inflexões durante a gestão Lula, continuarão sendo, inevitavelmente, debatidas com base nos problemáticos conceitos de política de Estado e política de governo. Isso nos faz recordar que as políticas públicas, mesmo pautadas constitucionalmente e muitas vezes definidas segundo critérios eminentemente técnicos, são, sempre foram e continuarão sendo parte inescapável do jogo político. E isso atualiza a antiga máxima segundo a qual, para sermos democráticos, devemos, se não amar a incerteza, pelo menos saber conviver com ela.

Carlos Aurélio Pimenta de Faria é doutor em ciência política pelo Iuperj e professor
da PUC Minas (carlosf@pucminas.br)

In: ESTADO DE MINAS. PENSARBRASIL. Sábado, 10 de julho de 2010, p. 14-15


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

As bolsas de mandinga

Alinhamento dos Chacras com o Pai Nosso

Fonseca - uma história de emoções