Nação poliglota
















A maioria dos brasileiros aprende a língua portuguesa com os seus familiares. Frequenta escolas regulares nas quais tem aulas de matemática, ciências e estudos sociais, ministradas em português. E cresce ouvindo falar da importância de estudar inglês e, se der tempo, também saber espanhol, mas que nesta outra língua é possível enrolar e falar portunhol. Muitos desses acreditam que ser brasileiro e falar português são sinônimos, mas não são.

Em um passeio rápido pelos diversos estados brasileiros, é fácil perceber a diversidade do português falado. Palavras iguais com usos diferentes, expressões específicas de determinadas regiões, pronúncias mais abertas ou fechadas, falas cantadas, mansas ou aceleradas. Uma audição mais atenta irá reparar que há, ainda, outros falares.

Além do nosso português, existem no Brasil diversas comunidades étnicas formadas por cidadãos que falam apenas a sua língua materna, aquela ensinada por seu grupo familiar. Ou que falam o português como segundo idioma, por necessidade de se comunicar com outros grupos. São comunidades indígenas, quilombolas e de descendentes de imigrantes. Juntas, somam 1,5 milhão de pessoas falando cerca de 200 línguas brasileiras, sendo 180 indígenas.

Segundo o estudo Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras, desenvolvido por Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira, do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística (Ipol), é preciso ter cuidado com esse patrimônio cultural para que ele não se acabe. “A existência dessas línguas coloca o Brasil entre os oito países que concentram mais da metade das línguas do globo, ao lado de Papua Nova-Guiné, Indonésia, Nigéria, Índia, México, Camarões e Austrália. No entanto, criar condições para que essa pluralidade de línguas continue existindo requer políticas de reconhecimento das línguas e de valoração de sua presença”, afirmam os pesquisadores do Ipol.

Neste ano, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizará o XII Censo Demográfico, e há uma novidade significativa na pesquisa: uma pergunta com foco nas línguas indígenas faladas no Brasil. Para que esta pergunta surgisse no questionário, houve um longo processo marcado pela criação do Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística do Brasil (GTDL). Este grupo foi constituído a partir do Seminário sobre a Criação do Livro de Registro das Línguas, realizado no Congresso Nacional em 2006, por iniciativa da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, do Departamento do Patrimônio Imaterial do Instituto de Patrimônio Artístico Nacional (Iphan) e do Ipol.

O trabalho desenvolvido pelo GTDL traz alguns apontamentos. O primeiro diz respeito ao reconhecimento da pluralidade linguística do Brasil, com proposições para preservação e valorização das línguas, sugerindo que os idiomas a serem inventariados tenham garantia dos direitos educacionais. Pede, ainda, que instituições de ensino superior e de pesquisa deem atenção aos diversos idiomas nacionais, desenvolvendo atividades de preservação e divulgação das línguas. E, também, a formulação de políticas públicas de fortalecimento da pluralidade linguística do país.

A partir desse ponto de vista, vamos tentar entender um pouco mais sobre o debate em torno da pluralidade linguística e a patrimonialização das línguas brasileiras.

UM POUCO DE HISTÓRIA

Muitos pesquisadores formulam teorias diferentes sobre a formação do povo brasileiro. José Ribamar Bessa Freire, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), em seu texto A herança cultural indígena, ou cinco ideias equivocadas sobre os índios, afirma que a formação do povo brasileiro é constituída, principalmente, por três matrizes: indígena (formada por povos de variadas famílias linguísticas, como o tupi, o karib, o aruak, o jê, o tukano e muitos outros), europeia (representada basicamente por portugueses, mas também por espanhóis, italianos, alemães, poloneses, para citar alguns) e africana (da qual participaram diferentes povos como os fon, yorubá, nagô, gêge, ewé, haussá, banto kimbundo, kicongo, benguela). A partir desse ponto de vista, podemos entender que esse mosaico cultural impulsionou a variedade linguística brasileira.

Mas, independentemente da vinda de imigrantes, estima-se que no século 16 já seriam faladas cerca de 1.078 línguas indígenas no território que hoje é o Brasil. No entanto, políticas de homogeneização, através da imposição do português como única língua legítima, e o glotocídio (assassinato de línguas) levaram ao desaparecimento de cerca de 85% dessas línguas.

O Diretório dos Índios, documento elaborado pelo Marquês de Pombal, em 1758, afirma a importância de impor a língua do colonizador, como forma de tirar da barbárie os povos conquistados e subordiná-los ao príncipe. Ficava proibido que, nas escolas, as crianças e “os índios que fossem capazes de instrução” falassem a língua de suas nações ou a língua geral, como era conhecido o tupi. Só se podia expressar falando a língua portuguesa.

Os imigrantes também foram vítimas da política linguística dos Estados lusitano e brasileiro. Getúlio Vargas marca o ponto alto da repressão a essas línguas, por meio do processo de “nacionalização do ensino”, impondo repressão linguística, criando o “crime idiomático”. Durante o Estado Novo, o governo ocupou as escolas comunitárias e as desapropriou, fechou gráficas de jornais alemães, japoneses e italianos, perseguiu, prendeu e torturou pessoas por falarem suas línguas maternas em público ou mesmo em ambientes privados.

Ruth Monserrat, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em linguística, lembra que dezenas de nacionalidades aportaram como imigrantes, desde o início da colonização (como as africanas) até os séculos recentes (europeias, asiáticas e outras), e questiona o que terá acontecido com as línguas faladas por eles. “Poderíamos ter pelo menos 70 diferentes ‘línguas do Brasil’, oriundas da imigração. (...) diferentes grupos migratórios com uma mesma língua oficial de origem, mas falantes de distintos dialetos poderiam ter gerado, em consequência de processos históricos já no Brasil, uma ou mais línguas diferentes.”

Hoje, no ensino, as políticas linguísticas já têm lugar especial: "Nos parâmetros curriculares nacionais há uma política de aceitação de variedades linguísticas pela e na escola. Isso não implica que ela não vá ensinar a variedade padrão, ensinará, mas nenhum aluno será obrigado ou forçado a perder a sua identidade linguística”, afirma Magdiel M. Aragão Neto, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), também doutor em linguística.

Isso fica patente também nas Escolas de Fronteiras, onde estão sendo implantados programas internacionais em que os alunos aprendem português, espanhol e guarani (uma das línguas oficiais do Paraguai).


INTERCULTURALIDADES

As relações entre as diversas culturas, a troca que se dá entre elas, podemos chamar de “interculturalidade”. José Ribamar Bessa Freire analisa que esse conceito “não é apenas mera transferência de conteúdo de uma cultura para outra. A interculturalidade é uma construção conjunta de novos significados, em que novas realidades são construídas, sem que isso implique abandono das próprias tradições”.

Há diversos exemplos de línguas brasileiras, gerados a partir dessas interculturalidades, a maioria delas ainda sem reconhecimento oficial: o pomerano e o hunsrückisch (oriundas da imigração alemã); o talian (dos imigrantes italianos provinientes de Vêneto e da Lombardia); a língua japonesa (uma fusão de dialetos das diferentes regiões do Japão); entre outras. Algumas delas têm produção de textos em prosa e verso, dicionário bilíngue, gramática e, inclusive, produção noticiosa, com a publicação de jornais. Até mesmo a nossa língua portuguesa está permeada pela interculturalidade, repleta de expressões de línguas estrangeiras e, também, indígenas.

É importante destacar que a interculturalidade influencia não só a estrutura linguística, mas também outros elementos culturais das comunidades. As populações indígenas, assim como qualquer cidadão do mundo, apropriam tecnologias que proporcionam bem-estar. Fugindo ao estereótipo, hoje muitos índios vestem roupas, em várias comunidades já existe luz elétrica e em algumas delas até internet. Esse processo de apropriação ocorre quase naturalmente, e nem por isso os índios deixam de ser índios. Os demais brasileiros também se apropriaram da luz elétrica, de diferentes tipos de roupas e outras tecnologias, e nem por isso deixaram de ser brasileiros.

Perceber a diversidade, respeitá-la e valorizá-la é essencial para chegarmos às políticas públicas que, de fato, beneficiarão a todos. Ainda sobre os indígenas, José Ribamar Bessa Freire ressalta que “os índios são diferentes e incluí-los não trata apenas de tolerar essa diferença, mas de estimulá-la. Essa diferença, vista no passado como atentatória à segurança nacional, hoje está sendo considerada elemento altamente enriquecedor da cultura brasileira.” O mesmo vale para as culturas dos descendentes de imigrantes.


PRESERVAÇÃO E PATRIMONIALIZAÇÃO

A Constituição Brasileira, de 1988, nomeou a língua portuguesa como idioma oficial do Brasil, e isso produziu uma interdição histórica, explicita ou não, sobre a possibilidade de participação política de sujeitos cidadãos brasileiros falantes de outras línguas. Essa mesma Constituição deu um passo importante para as línguas indígenas, pois atribuiu ao índio o estatuto de cidadão brasileiro, que tem direito a sua língua e a sua cultura. No entanto, ela silencia sobre as línguas alóctones (de imigração) e crioulas.

As políticas públicas de preservação das línguas no Brasil, e até mesmo no cenário internacional, são algo relativamente recente, mas que vêm ganhando força. Sobretudo pela atuação de instituições internacionais como a Unesco. Em 2009, ela lançou a segunda edição do Atlas Interativo de Línguas em Perigo no Mundo. Segundo a publicação, 190 línguas indígenas estão em risco de desaparecer no Brasil, sendo, em escala crescente, 97 em perigo, 17 definitivamente ameaçadas, 19 severamente ameaçadas e 45 criticamente ameaçadas. O Atlas aponta que 12 línguas morreram no Brasil, desde os anos 1950, sendo praticamente todas da região amazônica.

À exceção da Língua Brasileira dos Sinais, Libras, criada para a comunicação de surdos-mudos, que já é legalmente reconhecida e regulamentada, ainda não existem políticas públicas que possam atender às demandas de reconhecimento, valorização, proteção e divulgação das diferentes línguas faladas no Brasil. No ano 2000, teve início a política federal de proteção do patrimônio cultural imaterial, focada em saberes, celebrações, formas de expressão e lugares que concentram e reproduzem práticas culturais coletivas, a cargo do IPHAN.

Em 2006, Gilberto Gil, então ministro da Cultura, assinou a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, criada em Barcelona, no ano de 1996, que trata da diversidade cultural, refletindo-a como patrimônio comum da humanidade e fator de desenvolvimento, abordando também o pluralismo cultural. Desde a Convenção da Unesco sobre a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais, realizada em 2005, as políticas de fomento e promoção da diversidade cultural têm sido firmadas internamente, bem como nas relações internacionais, como fator e vetor de desenvolvimento econômico e social.

As políticas para a diversificação dos usos das línguas amplia os espaços de exercício do direito cultural, uma vez que dão papel de protagonistas aos falantes. É um processo que atua na promoção de mecanismos de vinculação social, interferindo nos processos de registro das relações sociais e dos saberes que as constituem.

O reconhecimento jurídico não é em si suficiente para promover um espaço multilíngue. O Plano Nacional de Cultura (PNC), que teve sua redação final aprovada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados em maio, faz três importantes indicações para a diversidade linguística: a valorização das línguas indígenas pela produção e tradução de documentos oficiais e pelo seu reconhecimento como línguas oficiais nas regiões onde são praticadas; o fomento de línguas e dialetos regionais de grupos étnicos e socioeconômicos, valorizando diversas formas e sistemas de comunicação e fomento da língua portuguesa em âmbitos internacionais, sobretudo na CPLP.

A criação do Livro de registro das línguas será um dos principais instrumentos para o Estado reconhecer as línguas das comunidades brasileiras como patrimônio cultural imaterial da nação. Este instrumento propõe fomentar um fórum de debate e de proposição de ações no campo das políticas linguísticas em, ao menos, três linhas de atuação: a promoção do direito às línguas; a instalação de políticas de registro e circulação das línguas; e a elaboração de equipamentos – instrumentos e dispositivos – articulados às políticas linguísticas.

O Censo 2010, que será realizado pelo IBGE, é um passo importante para a realização desse inventário. No entanto, ele deveria abranger todas as línguas, e não somente as indígenas. Ele será um instrumento essencial para a implementação da política patrimonial e de registro, mas deve reservar às comunidades linguísticas o direito de requererem ou não o registro. ©

por Rafael Munduruca


FONTE: Revista da Cultura - edição 35 (junho/2010)

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