Olhar de Mulher


          Frida Kahlo
João Paulo

Há pessoas que, de tão conhecidas, se tornam um enigma. Em torno de sua vida se tecem lendas e mitos, histórias e fantasias, até que se tornam personagens interessantes demais, perdendo-se a dimensão da vida real. A pintora mexicana Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón (1907-1954), mais conhecida como Frida Kahlo, é uma dessas personalidades. Em menos de 50 anos de vida, se tornou uma das mulheres mais conhecidas do século 20 por sua existência libertária em política e comportamento, por sua beleza estranha e marcante, por seus dramas pessoais e, sobretudo, pela força de sua arte.

Muitos já mergulharam na tentativa de reconstruir a vida de Frida, que envolve, com sua circunstância peculiar, as lutas políticas pelo socialismo no México, o movimento surrealista, a convivência com artistas de vanguarda de todo o mundo, a relação amorosa conturbada com o muralista Diego Rivera e a construção de sua própria obra, cada vez mais compreendida e valorizada. Ela foi personagem de biografias, romances, estudos estéticos, coleção de moda (de Jean-Paul Gauthier), homenagens de bandas de rock e até de uma cinebiografia com Salma Hayek (2002), com tudo de superficial e espetacular que Hollywood é capaz de fazer.

Sua imagem em trajes indígenas mexicanos, com sobrancelhas hirsutas e olhar fortemente dirigido ao observador é um dos ícones do século 20. A fortuna crítica e biográfica de Frida Kahlo ganha agora dois importantes livros: Frida Kahlo: suas fotos, organizado por Pablo Ortiz Monastério, um maravilhoso volume com mais de 400 fotografias do acervo da artista, que compõem uma sofisticada fotobiografia para quem se dispuser a ler as imagens e suas sugestões; e Diego e Frida, biografia do escritor francês J. M. G. Le Clézio, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2008. Cada um dos trabalhos, a seu modo, contribui para levar mais adiante a dimensão de mito da artista mexicana.



Baú aberto

Frida Kahlo: suas fotos está sendo lançado no Brasil ao mesmo tempo em que chega aos leitores do México, França, Espanha, Alemanha, Estados Unidos, Canadá e América Latina. A história do livro é quase uma narrativa surrealista. Já viúvo de Frida, Diego Rivera (1886-1957), que havia criado na Casa Azul (onde Frida passou toda sua vida) um museu dedicado à mulher, deixa instruções a Dolores Olmedo para que preserve os documentos do casal, só divulgando seu conteúdo 15 anos depois de sua morte. Dolores radicaliza as instruções de Diego e só agora, mais de 50 anos depois, os segredos foram revelados. Entre os papéis estão cerca de 6 mil fotografias, que permaneceram todos esses anos trancafiadas no banheiro da Casa Azul, no bairro de Coyoacán, na capital mexicana. O livro é uma seleção de 400 imagens desse conjunto.

Mas, na verdade, é muito mais que isso. Organizado em sete partes, o livro traça a historia visual da vida de Frida, na qual uma foto é capaz de ser exemplo do sofrimento físico que a atormentou seguidamente, da poliomielite da infância ao grave acidente de bonde na adolescência, que a fez penar em tratamentos dolorosos até a morte; outra imagem revela seus amores; uma série de registros mostra a influência do pai fotógrafo em sua obsessão por autorretratos; os amigos são personagens em vários momentos, do revolucionário Trótski ao capitalista Henry Ford, do artista experimental Duchamp a Dolores del Rio. Há momentos da infância e da maturidade; de amor e sofrimento. Retratos de alma, alguns deles cortados com estilete para extirpar rostos e outros com marcas de batom para manifestar afeto vivo.

Cada uma das partes ganhou uma introdução escrita por especialistas na vida e obra da artista. São textos que trazem informações importantes e análises compreensivas de momentos marcantes da existência de Frida Kahlo. São textos-guia, legendas que resultam de um esforço em penetrar no universo das imagens, no contexto histórico e na psicologia complexa da personagem. “Origens” mostra que, além do pai fotógrafo, a mãe, Matilde Calderón, foi negligenciada nas biografias da filha, talvez em razão de sua postura conservadora. A segunda parte, “Papai”, apresenta a sensibilidade estética de Guillermo (alemão nascido Wilhelm) para os retratos, mas também para a postura intelectual cética do homem desterrado de sua cultura.

A terceira seção, “Casa Azul”, traz imagens domésticas, de amigos e da convivência com Diego, além da arqueologia dos antigos moradores da residência. Em “O corpo dilacerado”, um dos temas mais presentes na obra de Frida Kahlo ganha um realismo duro: são imagens de radiografias, tratamentos dolorosos, períodos de recuperação no leito, visitas hospitalares e composições dramáticas com brinquedos (como uma charrete tombada). Na seção “Amores” estão as fotos escolhidas de relacionamentos de Frida, que escrevem histórias incompletas, com dedicatórias misteriosas e detalhes fascinantes.

As duas partes finais, “Fotografia” e “Luta política”, reúnem documentos visuais que fazem referência às grandes bandeiras políticas da época, dando a dimensão – presente em todo o acervo – da mescla humana de fantasia e apelo à realidade. Nesse itinerário visual, o livro vai do foco fechado na alma das pessoas à grande angular do panorama de uma época.





O elefante e a pomba

O romancista francês Le Clézio tinha nas mãos uma grande história: amor, política, estética, dor, vida familiar, resgate do passado mítico e sonhos utópicos de futuro. Tinha contra ele o fato de trabalhar com material conhecido, a vida de uma das mulheres mais célebres do nosso tempo. Por isso Diego e Frida é um livro interessante, pela capacidade de vencer os desafios da demasia sem se perder na mesmice do já sabido. Escrito como uma biografia do casal, se torna um exemplo de história de vida coletiva, convocando todo o entorno da vida de Diego e Frida, tanto no campo afetivo como ideológico. Frida puxa para a emoção individual; Diego para a imponência do coletivo.

Le Clézio não faz uma biografia tradicional, mas um ensaio biográfico. O casal é o foco de onde emerge a história de um tempo, de um país, de um projeto artístico e de um sonho político revolucionário. No entanto, quanto mais Diego se torna o centro da trama, em torno do qual sidera a jovem e apaixonada Frida, mais a força do sentimento, do amor, do ciúme, da traição e do sofrimento físico vão se assenhorando do destino do casal. O vazio que se segue à morte de Frida é sinal de que vinha dela a luz que alimentava o Sol egocêntrico de Diego. Entre a luz e a sombra, o lado humano da existência foi sempre o mais sombrio.

O grande gênio dos murais nacionalistas, um dos gigantes do seu tempo, é hoje compreendido em sua força artística, mas com a marca inescapável de suas circunstâncias. Suas obras tentavam provar que a arte revolucionária era imprescindível. Talvez menos poderosa em termos artísticos, Frida se soltou das determinações da história para penetrar no mito, e se tornou, hoje, muito mais reconhecida que seu companheiro de amor e sofrimento. Como dizia o pai da pintora, foram núpcias de um elefante e de uma pomba. Não se trata de uma disputa, mas da metáfora da transição de um século dividido entre a gravidade e o voo.


FRIDA KAHLO: SUAS FOTOS
Organizado por Pablo Ortiz Monastério
Editora Cosac & Naify, 524 páginas,
401 ilustrações, R$ 120

Diego e Frida
De J. M. G. Le Clézio
Editora Record.
In: ESTADO DE MINAS. 09 de julho de 2010.

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