Ouro Branco dá exemplo





Comunidade se mobiliza e consegue patrocínio para recuperar pintura de mestre Ataíde. Luta levou 13 anos, mas sucesso do esforço aumentou a autoestima da população da cidade mineira


Walter Sebastião



                                  
Renato Weil/EM/D.A Press





Em Ouro Branco, restauradores trabalham na Matriz de Santo Antônio para recuperar obras de Ataíde
Desde dezembro, vem sendo restaurada monumental obra de mestre Ataíde abrigada na Matriz de Santo Antônio, em Ouro Branco. O processo se deve à mobilização da Associação de Amigos da Cultura de Ouro Branco (Aacob). Depois de 13 anos de luta, a comunidade conseguiu patrocínio no fim de 2009. “Até 2012, estaremos com a igreja em toda a sua plenitude, com a arquitetura e as obras de arte restauradas”, conta Edilson Nascimento, fundador da entidade.
Edilson diz que, além da expectativa de atrair turistas a Ouro Branco, “o mais importante é a cidade ver o seu patrimônio preservado, sentir que sua história está representada nele”. Levar adiante um projeto de restauração como esse, diz ele, não é difícil, “mas glorioso”. E conclui: “É algo que mexe com a autoestima”.

Complexidade
Curador de artes visuais do Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana, Juan Carlos Thimotheo, de 24 anos, estuda a obra de Manoel da Costa Ataíde há seis. Quem mora em Ouro Preto, conta ele, convive diariamente com os trabalhos do mestre. “A pintura da Igreja de São Francisco impressiona pela complexidade e grandiosidade. Ele não pintou apenas o medalhão, mas todo o forro. Um céu aberto ao mundo mundano, com orquestra de anjos. Tudo é muito elaborado”, exemplifica.
Para seu mestrado na Universidade de Campinas (Unicamp), Juan Carlos escolheu peças que estão no Santuário do Caraça, em Catas Altas. Trata-se de produção do fim da vida do artista, datada de 1828 (dois anos antes da morte dele).
Essas pinturas revelam as transformações no modo de o mestre pensar a sua pintura: Ataíde deixava de ser um oficial que, mecanicamente, fazia encomendas para investir no aspecto artístico e autoral. Thimotheo observa que um dos sinais dessa mudança é o fato de Ataíde assinar a pintura, “o que não era comum na época”.
Trata-se de artista excepcional no campo da arte brasileira, garante ele. “Ataíde está para a pintura como Aleijadinho para a escultura”, assegura. “Os estudos sobre ele precisam de revisão. Enfatizam aspectos românticos e nacionalistas, mas deixam de lado a análise da produção e da especificidade da obra”, pondera.


Tesouro a ser descoberto
Fontes importantes para a obra de Ataíde foram as gravuras dos séculos 18 e 19 usadas como modelo para pinturas, explica o professor Alex Boher. A prática era comum entre os brasileiros, mas também foi adotada por mestres do renascimento. Em grandes dimensões, com cores vibrantes, o mineiro projetava as pequenas impressões em preto e branco.
Dessa operação surgiu pintura “mais tropical” que a portuguesa realizada no mesmo período, explica o pesquisador. Algumas dessas imagens vêm de artistas ilustres como Peter Paul Rubens (1577-1640). Elas chegaram em grande quantidade a Minas Gerais. “Com isso, artistas do barroco e do rococó mineiro tiveram influência de Rubens, mesmo que não soubessem”, observa Boher.
Com relação às pesquisas sobre o mestre de Mariana, o professor conta que sabe mais, atualmente, que há 20 anos sobre a vida familiar e pessoal dele. Lembra que há bons estudos sobre técnicas empregadas pelo artista, mas pondera: “Falta análise formal dos trabalhos”.
Boher diz que, ao se aprofundarem as pesquisas, será possível encontrar obras desconhecidas de Ataíde, cobertas por outras pinturas. “Ataíde é o grande pintor brasileiro do período colonial, tem obra de relevância mundial. Ele é o resumo da arte mineira daquele período”, afirma Alex Boher.
Trata-se de um artista que registrou a dimensão paradoxal do barroco e da nossa sociedade mestiça. “Homem religioso e mundano, ele vive com uma mulata, não se casa com ela, mas pinta figuras morenas em igreja só frequentada por brancos”, resume o pesquisador.

Musa mulata

Mestre Ataíde morreu solteiro. Declarou em testamento, redigido por ele, que, por “fragilidade humana”, teve quatro filhos (de fato foram seis, dois morreram ainda crianças) com Maria do Carmo Raimunda da Silva, escrava liberta.
Diz a lenda que a alforriada foi modelo para a Nossa Senhora da monumental pintura feita pelo artista para a Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto. Não há documentos que confirmem isso. Por sua vez, a pesquisadora Adalgisa Arantes não garante a veracidade da tese. “Historiador não autentica, aventa hipóteses”, adverte a especialista em barroco.
Na opinião dela, Maria do Carmo, além de figura especial, pode ter sido a musa do mestre. “Documentos mostram que a pintura de São Francisco é da época do início do relacionamento deles. Ataíde tinha por volta de 40 anos, uma companheira de 20 grávida do primeiro filho, e está realizando uma obra-prima. Tudo isso cria momento emocional que pode ter tido impacto na elaboração da pintura”, afirma.
O casal morava em casas separadas. Hipocrisia? “Convenção da época. Não era comum um homem branco, da elite militar, se casar com alguém de condição social inferior”, responde a especialista. O pintor viveu com Maria do Carmo até o fim da vida, deixou a herança para ela e para os filhos. Aliás, eles foram batizados na catedral, com padrinhos da elite marianense. O pai cuidou da educação da prole.


NA TRILHA DE ATAÍDE
Mariana
. Capela da Ordem Terceira de São Francisco de Assis


O corpo de Ataíde está enterrado neste templo. Chama a atenção o forro da sacristia. Há duas belas pinturas. Por poderem ser vistas mais de perto, é possível saborear a perícia e a graça das obras do artista.
. Museu da Arte Sacra


Guarda pintura sobre tela de São João batizando Jesus. Obra atribuída a Ataíde.

. Igreja de Nossa


Senhora do Rosário Forro com pintura seriamente danificada, exige reparos urgentes.


Ouro Preto


. Igreja de São Francisco de Assis
Podem-se ver várias obras do pintor, além da monumental pintura do forro. A igreja está para a obra de Ataíde como o santuário de Congonhas para Aleijadinho.



In: ESTADO DE MINAS. EM Cultura, domingo, 25 de julho de 2010, p. 5.

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