Sem perdão

Gênio da arte colonial brasileira, mestre Ataíde merece mais atenção. Obras importantes, como a pintura do forro em igreja de Mariana, correm o risco de se perder para sempre


Walter Sebastião



                                                             
Renato Weil/EM/D.A Press

O Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana será encerrado hoje. Ao adotar o tema Ataíde – traços e cores do nosso tempo, o evento chamou a atenção para o legado de um dos artistas mais fascinantes da arte brasileira: Manoel da Costa Ataíde (1762-1826). Ele é conhecido pela monumental pintura no forro da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, mas essa é apenas uma de suas obras primorosas.

Seu rico trabalho está espalhado por vários pontos de Minas Gerais, como Ouro Preto, Belo Vale, Mariana, Santa Bárbara, São Bartolomeu, Itaverava e o Santuário do Caraça. Ataíde não foi apenas um artista famoso do Brasil colônia. Ainda hoje, seu talento encanta o público. Felizmente, nos últimos anos, ampliaram-se as pesquisas sobre o mestre.
O festival de inverno reuniu estudiosos encarregados de desenvolver atividades relativas ao legado do artista. A equipe é formada por Adalgisa Arantes Campos, que organizou o livro Manoel da Costa Ataíde, aspectos históricos, estilísticos, iconográficos e técnicos (C/Arte), já em segunda edição; por Alex Boher, que ministrou oficina sobre a relação entre o pintor e as fontes iconográficas europeias; e por Juan Carlos Thimotheo, cujo mestrado enfoca obras do mestre de Mariana que se encontram no Santuário do Caraça, na Região Central do estado.


Rosário

Os pesquisadores avisam: é urgente a restauração da pintura de Ataíde que adorna a capela mor da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Mariana. O templo foi fechado, mas acabou reaberto depois da mobilização da comunidade. “A escolha de Ataíde para tema do Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana não foi só para enaltecê-lo, mas para chamar a atenção para o descaso com algumas obras dele”, afirma Juan Carlos Thimotheo, curador de artes visuais do evento.

Dói observar o forro da igreja do Rosário, pois o encanto das figuras e da atmosfera leve, captada pelo mestre, pode se perder. Rachaduras ao longo de toda a extensão do teto comprometem a visibilidade da imagem. Veem-se manchas e sujeira, as cores estão se perdendo, a tinta está se soltando.

O problema é antigo: em 1982, livro da pesquisadora Lélia Coelho Frota já o denunciava. A autora explicou que se trata de trabalho de 1823, “com elegante e moderna perspectiva, finas tintas do melhor gosto e valentia” – palavras do próprio artista, encontradas em documento de 1826. O conjunto também amargou os efeitos da “repintura inábil”.
A ameaça não se restringe ao forro. O Ministério Público Federal solicitou ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha) que fizesse a sondagem do terreno. Concluiu-se que a igreja tem complicações estruturais, causadas especialmente por problemas de drenagem do solo e infiltração.

Apesar do drama marianense, há notícias melhores: está sendo restaurada, em processo comandado pela Associação de Amigos da Cultura de Ouro Branco, pintura do artista sobre o forro da Matriz de Santo Antônio, naquela cidade.

Religião
Manoel da Costa Ataíde é um homem da América portuguesa, explica a pesquisadora Adalgisa Arantes. Branco, filho legítimo de militar, ele nasceu e morreu em Mariana. Realizou-se profissionalmente e teve “boa morte” – isto é, faleceu assistido por amigos, parentes e religiosos. Recebeu sacramentos, seu corpo foi sepultado na Igreja de São Francisco. Vestia o hábito da ordem e estava no caixão, costume raro na época – emblemas de um cidadão religioso, que transitou por irmandades de negros, pardos e brancos, mas sem se tornar “irmão professo”, pois era indigno disso, conforme declaração dele. Motivo: era concubinário renitente.



Não se sabe como Ataíde aprendeu a pintar, mas pode ter sido com João Gomes Batista, funcionário da Casa da Moeda. Adalgisa Arantes explica que a carreira dele deslanchou no início do século 19. Aos 40 anos, ele já vivia “da arte da pintura”. Pintor e ilustrador, foi dourador-encarnador de imagens de méritos reconhecidos. Teve muitos alunos – há carta dele para dom João VI, falando da necessidade de uma escola de artes na colônia. O mestre formou jovens e oficiais de pintura, teve aprendizes. Vêm daí vários trabalhos que lembram o estilo de Ataíde. “Por isso mesmo, podemos falar numa escola ataidiana”, observa Adalgisa.



Ele usava as gravuras que recebia como modelo, inspirando-se nas temáticas trazidas por elas. É um pintor de palheta clara, que ama o vermelhão e o azul da Prússia – cores usadas na pesquisa de identificação de suas obras.

Detalhe curioso na obra ataideana: em alguns templos, empregou a língua portuguesa nas tarjas de pinturas, embora o comum fosse o emprego do latim, língua culta de artistas e religiosos nos séculos 18 e 19.



Homem trabalhador, deixou obra extensa, comparada à de contemporâneos. Viajou – e muito – em lombo de burro pelas cidades do antigo bispado de Mariana. Lidou com obras complexas, como a pintura de forros. Quase septuagenário, tinha de subir em altos andaimes.

Era obrigado a viver no próprio canteiro de obras, hospedado no mesmo local onde ficavam os profissionais envolvidos na construção. Adalgisa Arantes explica que esse aspecto, somado à biografia de Ataíde, pode ter favorecido o olhar com viés antropológico aguçado do artista, “que capta diferentes tipos étnicos do mundo colonial e da sociedade escravagista”. O mestre era um homem apaixonado pela vida. “Vêm daí as mulheres robustas, a profusão de anjos diferentes uns dos outros, o tratamento dado às figuras humanas. Na pintura dele, tudo tem movimento – eles não são dramáticos, mas melodiosos e poéticos. É um artista que tem imaginação”, afirma a especialista.


In:  ESTADO DE MINAS. EM Cultura, domingo, 25 de julho de 2010, p. 1.

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