Sem sujeira


Mobilização da sociedade brasileira garante a aprovação da Lei da Ficha Limpa, exige nova postura dos políticos e cobra maior transparência e ética na política
Lucilia de Almeida Neves Delgado




                                Votação em plenário da Lei da Ficha Limpa desafiou o
                                legislativo brasileiro a responder ao anseio popular- Sérgio Lima/FI


Na primeira quinzena de junho, um assunto instigante e de enorme interesse para o aperfeiçoamento da democracia política no Brasil contou com ampla cobertura dos meios de comunicação. Também suscitou debates em associações comunitárias, igrejas, universidades, redações de jornais, entidades da sociedade civil, Parlamento Nacional e Tribunal Superior Eleitoral. Trata-se da Lei da Ficha Limpa, cujo objetivo principal é o de vetar a candidatura a cargos públicos de cidadãos que não tenham ficha limpa, ou seja, daquelas pessoas que estão em dívida com a Justiça ou foram por ela condenadas por prática de crime ou de crimes.

Sua aprovação pelo Congresso Nacional, sanção presidencial e interpretação pelo Tribunal Superior Eleitoral apresentam relevância indiscutível no que se refere ao interesse público. Isso porque democracia não é uma prática congelada na sua formulação teórica ou nas leis que traduzem suas características e regulamentam sua prática. Ao contrário, é uma construção permanente que pode e merece ser aprimorada e que também deve ser permeável às demandas da sociedade civil.

Por isso, a questão democrática apresenta dimensões e perspectivas históricas traduzidas por diversificados e alternativos projetos que também se relacionam com plurais modelos de exercício da cidadania. Na cultura política do mundo ocidental, na qual o Brasil está inserido, destacam-se três tipos de exercício da cidadania: o liberal, o liberal-democrático e o social-democrático.

A perspectiva liberal-democrática é a que mais interessa aos brasileiros, por ser o paradigma que orientou a implantação da ordem republicana no país. Também foi a meta de reconstrução democrática que orientou ações de cidadãos brasileiros e organizações da sociedade que lutaram para pôr fim a experiências autoritárias que feriram a liberdade e os direitos humanos em diferentes conjunturas da história do Brasil republicano. Foi assim em 1945, ao fim da ditadura do Estado Novo e também na década de 1980, quando se completou a transição da ditadura política implantada em 1964 para um regime democrático.

O suposto é que, nas democracias de modelo clássico liberal, a cidadania, entendida como conquista, fruição e exercício de direitos, seja garantida por requisitos legais. A questão, por mais que possa ser considerada, a princípio, bastante límpida, é complexa. Por isso diferentes pensadores sociais dedicaram-se a conceituar diferentes práticas e dimensões da cidadania no mundo ocidental e no Brasil.


Entre eles, destacam-se o britânico Marshall, que, de forma pioneira, na década de 1950, definiu a cidadania como inerente à democracia. Suas principais ideias eram as de que a cidadania, em sua abrangência, é definida pelo acesso da população de um determinado país a direitos civis, políticos e sociais.

No último quadrante do século 20, o jurista e cientista político italiano Noberto Bobbio também apresentou expressiva contribuição à teoria dos direitos da cidadania e à sua correlação com a democracia. Definiu esses direitos como sendo históricos e geracionais. Assim, os de primeira geração seriam civis; os de segunda, políticos; os de terceira, sociais; e os de quarta, difusos. Esses últimos incluem novas exigências do mundo contemporâneo, tais como preservação do meio ambiente e o respeito às etnias.

Tanto a perspectiva de Bobbio quanto a de Marshall são importantes contribuições para a definição da cidadania e de sua relação com os modelos liberais ou sociais de democracia. Todavia, não deixam de trazer em si as marcas de um forte eurocentrismo e também de uma concepção linear e sequencial de temporalidade, que não é condizente com o complexo movimentar da história.

Pensamento brasileiro No Brasil, dois cientistas políticos destacam-se por sua relevante contribuição aos estudos sobre cidadania e democracia. São eles Wanderley Guilherme dos Santos e José Murilo de Carvalho. O primeiro entende que cidadania e democracia não são fenômenos petrificados e seu fundamento é a historicidade, que lhes traz permeabilidade e possibilidade de ampliação ou mesmo de recuo. Já o segundo afirma que a cidadania apresenta dimensões políticas, sociais, civis, étnicas e ecológicas interligadas; que democracia e cidadania são fenômenos históricos da modernidade, vinculados ao Estado Nação e que no Brasil República tem predominado um modelo de estadania inaugurado na década de 1930, reatualizado na dinâmica da história e ainda não substituído por outro com potencial emancipatório mais efetivo.

A Lei da Ficha Limpa pode encontrar ressonância em uma prática de cidadania mais democrática, à qual todos esses pensadores se reportam. Todavia a cientista política Maria Vitória Benevides talvez seja a que melhor contribuição traz para o entendimento não só da importância, mas também dos mecanismos que imbricam o exercício da cidadania com práticas democráticas. Em seu livro Cidadania ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular, publicado em 1991, apresenta, com sofisticada elaboração, os conceitos de cidadania passiva e cidadania ativa e considera que a Constituição de 1988 sacramentou alguns institutos de cidadania ativa, entre eles o da iniciativa popular, do plebiscito e do referendo.

Ora, o Projeto de Lei da Ficha Limpa só foi apresentado à Câmara dos Deputados por ter sido precedido por um forte e histórico movimento de cidadania ativa. Essa mobilização, que empolgou milhões de brasileiros, foi coordenada por 46 entidades da sociedade civil, tendo à frente o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que foi criado por iniciativa da Comissão de Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Além de colaborar na redação final do projeto de lei, as diferentes associações também signatárias do documento conseguiram completar e ultrapassar o número de assinantes, correspondente a 1% do eleitorado, distribuídos em pelo menos cinco estados da federação, conforme exigido pela Constituição Federal para seu registro no Poder Legislativo federal. Ao todo foi recolhido 1,3 milhão de assinaturas em papel, fora mais de 2 milhões on-line.

Seu texto original aumentava o número de crimes que impediam a elegibilidade de um candidato, como homicídio doloso, crimes contra o meio ambiente e utilização do trabalho escravo. Além disso, atentava para uma celeridade maior ao procedimento de definir um candidato como “ficha suja”, pois aceitava que a condenação em primeira instância já o impediria de registrar sua candidatura.

O projeto foi apresentado no plenário da Câmara dos deputados pelo deputado Antônio Biscaia (PT-RJ). O texto original sofreu alterações por emendas de parlamentares, com destaque para a que define como inelegível o cidadão brasileiro condenado não só por uma sentença de juiz de primeira instância, mas sim por um órgão colegiado de segunda instância. Essa mudança, com certeza, aprimorou o projeto e o tornou mais justo. Sua aprovação, como lei sancionada pelo presidente da República, tem um significado histórico profundo.

A Lei da Ficha Limpa abrange crimes dolosos e com pena acima de dois anos, como tráfico de entorpecentes e crimes contra a vida; os condenados por ato de improbidade administrativa; os que tiverem seu mandato cassado por abuso de poder político, econômico ou de meios de comunicação, corrupção eleitoral e compra de votos; os condenados por crime eleitoral que resulte em pena de prisão; os condenados em decisão transitada em julgado; os excluídos da profissão por crime grave ético ou profissional; os eleitos que renunciarem ao mandato para evitar processo por quebra de decoro. A inelegibilidade será de oito anos.

Pode-se concluir que a aprovação dessa lei marca um novo tempo de maior e necessária transparência. Também faz jus às lutas, empenho e iniciativas de cidadãos brasileiros que se dedicaram a combater uma corrupção secular que assola o Brasil. Corrupção e mandonismo tão bem simbolizados pela prática do voto de cabresto à época da Primeira República, no início do século 20, e por práticas clientelistas de compra de votos e de financiamento eleitoral que perduram até os dias presentes, em pleno século 21.

Neste ano, o Brasil, sem sombra de dúvida, deu um grande passo para o exercício de uma prática mais ética e cidadã da política. Foi criado um requisito de elegibilidade há muito necessário. De agora em diante, todos os candidatos que quiserem ingressar e se manter na vida pública têm de se submeter às novas regras, mais transparentes e condizentes com valores da democracia e com práticas de uma cidadania ativa.

Lucilia de Almeida Neves Delgado é
historiadora, professora titular da PUC Minas,
professora da UFMG e pesquisadora sênior da UnB.
In: ESTADO DE MINAS. PENSARBRASIL. Sábado, 10 de julho de 2010, p. 20-21.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

As bolsas de mandinga

Alinhamento dos Chacras com o Pai Nosso

Fonseca - uma história de emoções