Viajante imaginário - Debret






Debret não conheceu várias das paisagens e cenas que pintou. Usou como base a obra do desenhista prussiano Sellow, produzida no Sul do país


Jaelson Bitran Trindade

O mais notório retratista do Brasil no século XIX, Jean-Baptiste Debret, foi pouco além da Corte do Rio de Janeiro. Em sua obra Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, usou desenhos e narrativas de terceiros para compor estampas relativas a lugares onde nunca esteve e a situações que nunca viveu.

As várias pranchas da Viagem Pitoresca e, sobretudo, as 40 imagens de lugares entre o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul da extinta Coleção Marqueses de Bonneval (SP), bem como diversas imagens do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e de São Paulo existentes no Museu Castro Maya (RJ), pareciam provar que Debret foi viajante de grande fôlego. Mas basta examinar sua obra e seus dados biográficos, e analisar outras “viagens pitorescas” ao mundo americano, para se pôr em dúvida essa idéia






Uma charqueada gaúcha é assim descrita pelo pintor: “Passando pelo barracão das caldeiras, vimos pela primeira vez negras ocupadas nos trabalhos da charqueada (...). Dirigindo-nos para o lado do rio, percorremos o terreno do secadouro, para onde se leva a carne depois de dois dias de salgação, sendo estendidas nas cordas de couro esticadas entre as inúmeras estacas”. Teria Debret vivenciado essas cenas? O uso da primeira pessoa não nos deve iludir quanto à sua presença física no cenário descrito. Pelo contrário. Aqui e ali em sua obra, encontramos afirmações do tipo “eu vi”, “me falou”, “eu falei”, “eu fui”, “eu estive”, mas somente quando se referem às cenas tiradas a curta distância da Corte. Nas outras regiões brasileiras da Viagem Pitoresca, só o texto sobre a charqueada rio-grandense traz este tipo de referência, e ainda assim utilizando o plural: “vimos”, “percorremos”, “mostraram-nos”. Talvez um recurso a certo “eu” fictício?


Provavelmente, pois a famosa “viagem” de Debret ao Sul torna-se pouco verossímil quando se analisa o contexto de sua vida no Rio de Janeiro. Ele era um homem de Corte, um professor de pintura muito envolvido com questões institucionais e com diversas encomendas para o Palácio e o Teatro Real. Em 5 de novembro de 1826 foi inaugurada a Academia e Escola Imperial de Belas Artes, com sua visceral participação. O pintor não podia ceder passo ao inimigo — o português Henrique José da Silva, que queria expulsar os franceses da escola que dirigia. No início do ano letivo, em 1827, lá estava Debret recebendo vários alunos. As exposições de pintura de 1829 e 1830 mostram sua atividade intensa desde então. Assim foi até 1831, quando retornou definitivamente à França. Não é crível, portanto, que ele tenha acompanhado D. Pedro I em sua partida rumo ao extremo sul do Brasil, em março de 1827, para a Guerra da Cisplatina, e lá permanecido até maio.


Então, como concebeu aquelas aquarelas? Lançando mão de um viajante invisível. No caso do grande conjunto relativo ao eixo Rio de Janeiro–Rio Grande do Sul, com cerca de 60 imagens, há um homem que pode ter passado por doublé nessa história pitoresca. É Friedrich Paul Sellow (1789-1831?), botânico prussiano, companheiro de viagem e ilustrador de boa parte da obra Viagem ao Brasil, de 1815 a 1817, de Maximilien Wied-Neuwied. Apontado por seus contemporâneos como célebre naturalista, excelente desenhista e aquarelista, Sellow retornou para a Europa em 1817 com Wied-Neuwied, mas estava de volta ao Brasil em 1820.


Situações envolvendo Debret e Sellow reforçam a hipótese de que muitas das composições do francês relativas às regiões meridionais do Brasil tiveram como matriz desenhos do prussiano. O historiador Newton Carneiro (1914-1987) acreditava que Debret passara pelos Campos Gerais do atual Paraná (que era então chamado de 5ª Comarca de São Paulo), mas duvidava que o francês tivesse chegado até o povoado onde atualmente está a cidade de Guarapuava. Para isso, teria de se afastar da Estrada Real do Sul cerca de 260 quilômetros, em território inóspito, não colonizado.


Segundo Carneiro, a aquarela “Freguesia de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava”, intitulada e assinada por Debret (1827), coincide com a descrição do lugar feita em 1822 pelo diretor da missão indígena ali existente, padre Chagas Lima, em sua Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava, que apresenta dados geográficos baseados em Sellow. Mas o historiador adverte que quem esteve de fato em Guarapuava foi o naturalista prussiano.


Outro viajante francês, Saint-Hilaire, comenta em Viagem à Província de São Paulo: “É o abade Chagas que, em seu trabalho, cita Sellow. Este último tinha, por conseguinte, passado por Campos de Guarapuava, e só podemos lamentar profundamente que suas observações sobre a região não tenham sido publicadas”. Em janeiro de 1820, quando Saint-Hilaire se encontrou com Sellow na Fábrica de Ferro de Ipanema, em Sorocaba (SP), o botânico alemão Wied-Neuwied ainda não fora para a Comarca de Curitiba (Paraná atual), mas pretendia. Além de Ipanema, Sellow visitou o Salto de Votorantin, no Rio Sorocaba. Tanto a fábrica quanto o Salto foram motivos de aquarelas de Debret.


Esse prussiano, informa Abeillard Barreto, “fez a maior e mais completa excursão geológica de todos os tempos no Rio Grande do Sul”, em quatro anos de permanente atividade: de 1823 a 1827. Fez também “desenhos de cidades, paisagens, tipos, armas e utensílios”. No início de abril de 1827, retornou a São Paulo pela rota de São Leopoldo e Santo Antônio da Patrulha, tomando depois a Estrada do Sul, o Caminho das Tropas. Sellow passou alguns meses na Corte, mas retornou logo ao Sul, onde visitou sucessivamente Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Depois foi para o sertão de Minas, para a região dos rios Mucuri e Doce. A data de sua morte, por afogamento, neste último rio, é provavelmente 1831.


Quando saiu do Rio Grande, em 1827, com destino ao Rio de Janeiro, Sellow trouxe seus originais? Onde foram parar os “desenhos de cidades, paisagens, tipos, armas e utensílios” produzidos durante sua estada no Sul do país? Será que não os deixou no Rio ao partir para sua última viagem?


A propósito da prancha “Acampamento Noturno de Viajantes nos Campos Gerais da Comarca de Curitiba”, Debret faz uma observação sobre os homens que tiveram a ousadia de embrenhar-se no sertão. Cita os principais: “O estrangeiro que tenha residido no Brasil observa aqui, sem espanto, a tenacidade infatigável do paulista que, através dos campos desertos, prossegue sem cessar a sua faina. Mas como não admirar mais ainda o naturalista europeu, levado pelo amor à ciência a compartilhar das dificuldades do nômade (...)? É preciso aqui convirmos (...) que se trata de uma coragem heróica, doravante ligada aos nomes venerados de Maximiliano de Neuwied, Augusto de Saint-Hilaire, Spix e Martius, Langsdorf e Frederico Celaw [sic] que eu conheci no Brasil”.


Os viajantes citados foram os maiores exploradores em ação no Brasil contemporâneos de Debret. Mas tudo indica que o lembrete final – “que eu conheci no Brasil” – se refere somente a Friedrich Sellow. É uma homenagem ao homem intrépido que se abalou pelas regiões meridionais do Brasil.


A observação de Debret é sinal de que suas trajetórias se cruzaram. Houve um projeto comum entre os dois artistas? Se uma aquarela da qualidade daquela de Belém de Guarapuava podia ser realizada com base num terceiro, por que não as demais da série São Paulo – Rio Grande? Isso não era incomum. No modo de produção das “viagens pitorescas”, muitas vezes não era preciso “estar lá”, desenhar no próprio local. Dentro da compreensão da época, os “quadros pitorescos” eram verdadeiros sim, porque úteis: serviam ao prazer e ao conhecimento.


O próprio Debret assume que seu olhar para o restante do país contou com a ajuda de terceiros. “Por ocasião de nosso desembarque, a mãe do príncipe regente D. João VI acabava de morrer, e já se ocupavam dos preparativos do cerimonial a ser observado na aclamação do novo monarca brasileiro. Chegávamos a propósito, e apressaram-se em fazer com que nossos diversos talentos contribuíssem para a importante cerimônia (...). Desde esse momento, especialmente ocupado em retraçar uma longa série de fatos históricos nacionais, tive à minha disposição todos os documentos relativos aos usos e costumes do novo país que eu habitava e que constituíram o ponto de partida de minha coleção”. Diz também: “Tive a oportunidade de manter constantemente, por intermédio de meus alunos, relações diretas com as regiões mais interessantes do Brasil, relações que me permitiram obter, em abundância, os documentos necessários ao complemento de minha coleção já iniciada”.


Uma coleção que cumpre o seu papel de esboçar “cenas nacionais ou familiares do povo” com o qual Debret conviveu durante dezesseis anos de sua vida. Sua obra permite a identificação de um país nascente, ao traçar um paralelo com as nações européias. Mostra o que há de selvagem, o que há de civilizado. Incute o ideal de progresso. Tudo com o traço inconfundível do artista, que “debretizou” as informações recebidas, ajustando-as ao seu modo de representar.
Revelar o desenhista “fantasma” que serviu de fonte primária para várias paisagens de Debret não diminui a importância do pintor francês no registro da História do Brasil. Serve, no entanto, para abrir espaço nesse pedestal também para o intrépido explorador prussiano. Graças a ele, chegaram aos nossos dias algumas visões inéditas de um país em formação. Um patrimônio artístico e histórico precioso.


Jaelson Bitran Trindade é historiador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), doutor pela USP com a tese “A Produção de Arquitetura em Minas Gerais na Província do Brasil” (2002) e autor de “Debret pitoresco ou o roteiro do Sul” (Anais do Seminário EBA 180/UFRJ, 1997) e “Tropeiros” (Editoração/ Incepa, 1992).


Saiba mais:


DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo/Belo Horizonte: Edusp/Ed. Itatiaia, 1978.


BARRETO, Abeillard. Bibliografia Sul-rio-grandense. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1976.


PRADO, João Fernando de Almeida. Jean-Baptiste Debret. São Paulo: Nacional/ Edusp, 1973.


SAINT-HILAIRE, Augusto de. Viagem à Província de São Paulo. São Paulo/Belo Horizonte: Edusp/Itatiaia, 1976.








In: .http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=1358

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