Dos pioneiros aos nossos dias

História da evolução dos estudos sobre o Brasil realizados por especialistas dos EUA e Europa mostra crescimento constante e momento de sedimentação
Marshall Eakin
 
Maurício Lima/AFP
De economia dependente a potência emergente, Brasil se mantém tema de interesse no exterior

Nos últimos 50 anos, o mundo, o Brasil e os brasilianistas passaram por grandes transformações. O mundo polarizado da Guerra Fria acabou. O Brasil emergiu como uma potência econômica e política. A comunidade de estudiosos com enfoque no Brasil fora do país permanece substancial e estável, mas com menos influência no Brasil. Tanto a primeira como a segunda geração de brasilianistas nasceram e floresceram durante a Guerra Fria, principalmente nos Estados Unidos (com personagens importantes não estadounidenses, especialmente da Europa). A primeira geração (antes de 1960) foi muito pequena – com uns poucos historiadores, críticos literários e cientistas sociais. Verdadeiros pioneiros no mundo acadêmico do mundo desenvolvido, esta geração contava com figuras como Donald Pierson e Charles Wagley (antropologia), Richard Morse e Stanley Stein (história), Samuel Putnam e David Driver (literatura). O total de especialistas com interesse no Brasil neste período dificilmente chegava a 100 professores e, normalmente, eles eram os únicos brasilianistas nas suas universidades.

A grande revolução nos estudos latino-americanos produziu a segunda geração, um grupo muito maior. Os chamados “filhos de Fidel” nasceram da convergência de três fatores nos anos 1960. O primeiro fator foi o crescente poder econômico dos Estados Unidos no pós-guerra. O segundo foi o crescimento fenomenal das universidades norte-americanas entre 1945 e 1975. Finalmente, o mundo polarizado da Guerra Fria e, especificamente, a Revolução Cubana, de 1959, fizeram com que houvesse um grande investimento nos chamados “estudos de áreas do mundo” e um boom nos estudos latino-americanos no mundo acadêmico nos Estados Unidos (e, em menor escala, na Europa). Os estudos brasileiros cresceram como uma pequena parte dos estudos latino-americanos – um campo dominado naquela época e, ainda hoje, pelos estudos e os estudiosos no México.

Foram as pesquisas no Brasil e os livros desta grande geração que formaram a imagem e a terminologia do brasilianista. A maioria chegou precisamente nos primeiros momentos da ditadura militar e alguns deles, como Thomas Skidmore, estavam no Brasil durante o golpe. Com a publicação das grandes obras clássicas deste grupo – Skidmore, Joseph Love, Werner Baer, Riordan Roett, Stuart Schwartz, Ken Maxwell, por exemplo –, iniciou-se um debate no Brasil sobre os chamados brasilianistas. Quem eram esses gringos pesquisando os assuntos mais íntimos do Brasil aparentemente sem restrições? Na década de 70, eram vistos com uma certa fascinação e suspeita pelos acadêmicos e intelectuais brasileiros, que estavam sofrendo cassações, exílio, demissões e (em alguns casos) tortura.

O número de programas de pós-graduação no Brasil era pequeno nos anos 60 e 70, assim como o total de professores universitários brasileiros. Um grupo pequeno de estrangeiros (talvez 200 pessoas) exercia grande influência no mundo acadêmico e intelectual do Brasil. Ironicamente, essa influência surgiu precisamente com os chamados “anos de chumbo”. A partir daí, começou uma complicada relação entre “brasilianistas com dólar e liberdade” e “brasileiros oprimidos”. Uma outra ironia: o momento da maior influência dos brasilianistas no Brasil foi exatamente durante os anos da ditadura.



A terceira e a quarta geração de brasilianistas surgiram depois de 1975 em circunstâncias completamente diferentes das gerações anteriores. Nos anos 70, o contexto do Brasil e dos brasilianistas mudou devido a diversas circunstâncias, tais como os choques de petróleo, uma série de recessões nos Estados Unidos, o fim da expansão das universidades norte-americanas, o colapso da União Soviética e do mundo bipolar e o crescimento do Brasil. Meio século depois de 1960, o Brasil transformou-se de um país rural do café para uma potência econômica. Com a metade dos 70 milhões de habitantes morando em áreas rurais em 1960, o Brasil passou a ser uma grande nação de quase 200 milhões de habitantes, com menos de 15% dos brasileiros nas áreas rurais. O país entrou na lista das 10 maiores economias do planeta com uma base industrial e uma agroexportação forte e sustentável.


Temas globais

A demografia das duas grande nações também mudou. O ciclo da geração dos baby boomers nos Estados Unidos (nascidos entre 1946 e 1964) estava terminando nas universidades na década de 80 e, com o fim da expansão das universidades e programas de pós-graduação, os estudos latino-americanos nos Estados Unidos e Europa passaram por uma transformação. De um lado os estudos latino-americanos (e brasileiros) se consolidaram nas universidades. Por outro lado, o mundo acadêmico e de apoio financeiro das fundações e do governo federal deu as costas aos estudos de áreas do mundo favorecendo os temas globais. Nas ciências sociais, essa tendência foi mais forte especialmente nas disciplinas de economia, sociologia e ciências políticas.

Com a redescoberta da globalização e a facilidade de viajar pelo mundo, essa mesma tendência enfatizou a importância de dados quantitativos e de teoria formal. Ter um conhecimento profundo de uma parte do mundo (a América Latina, o Brasil) e falar fluentemente uma segunda língua passaram a ser vistos como aspectos negativos no currículo dos cientistas sociais. Os estudiosos de literatura, cultura e história ficaram como os últimos especialistas em regiões e países específicos.

Na mesma década o ensino expandiu-se no Brasil, em particular nas universidades brasileiras e nos programas de pós-graduação. De uns poucos programas de doutorado na década de 60, hoje há centenas de programas em ciências sociais e humanidades. Hoje, milhares de estudiosos brasileiros têm mestrado ou doutorado em história, línguas, literatura, ciências políticas, antropologia, sociologia e outras disciplinas nas ciências humanas e letras, ou seja, o número destes estudiosos cresceu vertiginosamente nas últimas décadas.

Mesmo tendo aumentado espantosamente o número de acadêmicos brasileiros nos últimos 50 anos, a quantidade de brasilianistas é estável, provavelmente em torno de 500 estudiosos no total (principalmente nas áreas de literatura, estudos culturais, história, antropologia e ciências políticas). O resultado é que o peso dos brasilianistas no mundo acadêmico e na vida pública e intelectual brasileira diminuiu nas últimas décadas.


Nova safra

Felizmente, essa nova onda de jovens brasilianistas é excelente. Eles têm uma fluência excepcional em português, investem mais tempo no Brasil e fazem intercâmbios constantes com brasileiros (e, muitas vezes, casam-se com brasileiros ou brasileiras). Em parte, os brasilianistas formados após 1990 beneficiaram-se da revolução nos meios de comunicação e transporte. O intercâmbio com o Brasil e com os brasileiros em 2010 é imensamente mais fácil do que em 1960. Quando o historiador Leslie Bethel, por exemplo, chegou ao Brasil pela primeira vez, em 1961, viajou em navio da Inglaterra. Não havia nem fax nem celular e, com certeza, ele e sua geração não dispunham de correio eletrônico!

O intercâmbio de brasilianistas e brasileiros teve um forte impulso nos anos 60 e 70 com o exílio (forçado ou voluntário) de muitos professores brasileiros. Nesta mesma época, o financiamento de fundações americanas e europeias, como Ford e Rockefeller, as bolsas Fulbright e o Conselho de Pesquisa nas Ciências Sociais (SSRC, na sigla em inglês) estreitaram as relações entre professores e instituições no Brasil e no Atlântico Norte. Professores como Emília Viotti da Costa (na Yale University) e Gláucio Dillon Soares (na Universidade da Flórida) ajudaram a formar muitos brasilianistas nas universidades americanas.

Hoje, as finanças mudaram. As bolsas para formar as próximas gerações de brasilianistas nos Estados Unidos e na Europa diminuíram substancialmente. Em contraste, as bolsas para programas de pós-graduação nas universidades brasileiras (principalmente da Capes) continuam aumentando. O tamanho da comunidade acadêmica brasileira segue crescendo.

Os estudos brasileiros no exterior (especialmente Estados Unidos e Europa) hoje são fortes e estáveis, mas os brasilianistas têm um perfil muito diferente das gerações dos anos 60 e 70. Nas nossas vidas de ensino universitário, os brasilianistas são, acima de tudo, latino-americanistas com especialização no Brasil. As novas gerações têm uma formação muito mais especializada do que os pioneiros, como Richard Morse, Thomas Skidmore e Riordan Roett. Em parte, essa especialização reflete o crescimento monumental de obras sobre o Brasil em todas as disciplinas e a grande maioria desta bibliografia é produzida por brasileiros. Thomas Skidmore e Alfred Stepan tiveram um grande impacto no Brasil não simplesmente porque escreveram obras excelentes, mas também por serem uns dos poucos especialistas (brasilianistas ou brasileiros) nas suas áreas (de história e de política) e com uma visão abrangente.

Um Brasil com projeção econômica e política no mundo ajuda a fortalecer os estudos brasileiros no exterior. O sucesso das companhias e empresários brasileiros abre novas oportunidades para consolidar e institucionalizar os estudos brasileiros no mundo. Jorge Paulo Lemann, o grande financista brasileiro, já doou milhões de dólares para criar centros de estudos brasileiros na Universidade de Harvard e na Universidade de Illinois (Urbana-Champaign). A Brazilian Studies Association (Brasa), fundada em 1992 para promover os estudos brasileiros (principalmente nos Estados Unidos), tem congressos internacionais de dois em dois anos e tem entre 500 e 600 sócios.

Nas próximas décadas o papel do Brasil no mundo continuará a crescer com sua estabilidade e poder econômico e político. A expansão da comunidade de acadêmicos e intelectuais no Brasil vai acompanhar o crescimento demográfico, econômico e social do país. A comunidade de brasilianistas será estável e, consequentemente, vai ter muito menos influência no Brasil. O intercâmbio acadêmico, cultural e intelectual entre o Brasil e os brasilianistas vai aumentar também, o que será bom para todo mundo.


Marshall Eakin é historiador americano especializado em história do Brasil, professor da Vanderbilt University, em Nashville, Tenessee, Estados Unidos, e diretor-executivo da Brazilian Studies Association (Brasa), entidade que reúne os estudiosos sobre o Brasil no exterior. É autor de dois livros sobre temas ligados à história da economia mineira: Empreendimentos britânicos no Brasil: the St. John d’el Rey Mining Company e a Mina de Morro Velho; e Capitalismo tropical: a industrialização de Belo Horizonte.

In: ESTADO DE MINAS. PENSARBRASIL. 13 de novembro de 2010.

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