E agora, Brasil?

Características culturais e humanas do país se somam ao atual estágio de desenvolvimento, gerando interesse internacional. Desigualdade continua sendo o maior desafio a ser vencido
Yves Sintomer
Vanderlei Almeida/AFP
Cristo Redentor, no Rio de Janeiro: o Brasil como desafio a pesquisadores de todo o mundo

Gosto do Brasil desde o primeiro dia em que aí coloquei os pés, há quase 25 anos. Hoje esse país faz parte da minha identidade: cheguei a torcer pela Seleção Brasileira na última Copa do Mundo (tudo bem que não foi muito difícil em razão dos vexames da França!) e dei à minha filha mais velha um nome brasileiro.

Claro, no começo descobri o país por meio daquilo que faz sua fama: o carnaval, que nos instiga uma aura libertária; a música, com seus ícones do tropicalismo e da bossa nova; a Cidade Maravilhosa, repleta de praias ensolaradas; a garota de Ipanema, que imaginamos mestiça; e todos os artistas do futebol.

Conhecendo melhor o país, no entanto, me dei conta de que esses clichês turísticos, por mais impressionantes que sejam, devem ser conjugados com alguns detalhes do dia a dia. O europeu que vive no Norte dos Alpes ou dos Pireneus é pego de surpresa pelo calor humano e a forma espontânea com que é recebido pelos seus amigos, e pelos amigos dos amigos, em terras brasileiras. Morei anos em Berlim, cidade extraordinária, mas o número de convites que recebia para sair durante uma semana em Belo Horizonte era maior do que num ano inteiro na capital alemã.

Esse sentimento festivo também pode ser encontrado numa das culinárias mais diversificadas do planeta. A magia do carnaval tem ecos na religiosidade ou no misticismo que atravessa todas as camadas sociais, como se a consciência dos limites das nossas vidas individuais e da nossa percepção do mundo empurrasse as pessoas a aceitar, com naturalidade, a existência de uma dimensão não racional da existência.

No exterior, a cultura brasileira não tem mais o mesmo fôlego expansivo que ela tinha nos anos 1950 ou 1960, mas sua vitalidade cotidiana – sejas nas ruas, nos bares, nos clubes... – ainda tem um charme incomparável. A arte e a arquitetura contemporâneas, quando postas em evidência, também fazem parte desse elã.

As mais belas praias, com frequência, são situadas em zonas pouco visitadas pelos turistas estrangeiros. Estes não são muito numerosos tendo em vista as dimensões do país. O turismo verde brasileiro, que vem se desenvolvendo, permanece ignorado na Europa. A beleza física das pessoas continua impressionante, ainda que o visitante estrangeiro veja a proporção de indivíduos com excesso de peso aumentar, ano após ano, desestabilizando parte da mítica estética. A capacidade de sedução dos dois sexos, no entanto, parece intacta, e a mestiçagem segue desdobrando suas cores cintilantes.

Mas é preciso deixar claro: alguns traços da vida brasileira ainda trazem desconforto para um olhar europeu.

O mais difícil é a desigualdade social. As diferenças de renda são absurdas. O luxo aparece mais do que no Velho Continente. E a miséria também, sobretudo nas ruas. O choque é ainda maior pelo fato de, no Sul e no Sudeste, o nível de riqueza estar se aproximando do da Europa do Sul. Não há dúvidas de que as despesas com saúde e educação, inacessíveis para os mais pobres, são consideradas um descompasso aos olhos daqueles cujos filhos puderam se beneficiar – da maternidade à vida adulta; da escola primária à universidade – de um serviço público de qualidade. A França ou a Alemanha também têm seus guetos de ricos, mas as classes médias não têm necessidade de se fechar em condomínios, clubes privados ou edifícios protegidos por cercas e vigias para viver em tranquilidade, em face de favelas e bairros populares onde seria perigoso colocar os pés. Se vivesse durante um tempo no Brasil (velho sonho), faria sem dúvida como todos, mas não posso considerar essa situação satisfatória. O desenvolvimento espacial separado das diferentes classes sociais é sintomático de um mal profundo. Ele contraria não somente o senso de justiça, mas também o bem-estar daquilo que é uma vida admirável.



Insegurança e classe

Além disso, essas desigualdades e esse separatismo socioespacial são ligados à insegurança – infinitamente maior do que na Europa – que pesa sobre a vida diária de todos, e não somente no que se refere aos habitantes das favelas, embora estes sejam os mais atingidos.

Isso choca ainda mais pelo fato de haver uma relação entre as desigualdades de etnia e as de classe. Por quase toda parte, os negros são maioria entre os que efetuam os trabalhos mais penosos e menos remunerados, além de serem sub-representados nos quadros de poder, de prestígio e de riqueza – com exceção da música e do futebol. É verdade que conhecemos isso no Velho Continente, sendo que os recentes episódios “racistas” do governo francês me enchem de vergonha. Mas nenhum dos meus amigos ou colegas europeus, no dia a dia, tem uma empregada em casa. E essa amplitude residual da domesticidade – negra, na maioria das vezes – não é um traço que projeta o Brasil para o futuro.

Em relação à Europa, os homens ainda participam pouco dos cuidados com as crianças e das tarefas domésticas; não é fácil ser homossexual fora das grandes cidades, e uma das razões de Dilma não ter ganhado a eleição no primeiro turno foram suas declarações favoráveis à legalização do aborto.
Por último, o modo de desenvolvimento atual parece dificilmente sustentável do ponto de vista ecológico. A poluição sonora e a qualidade do ar são difíceis de suportar. A falta de preocupação diária com questões ambientais ou a autorização das culturas transgênicas para satisfazer o poderoso lobby agroexportador suscitam ceticismo no observador.

Apesar desses limites, há diversos sinais positivos. Nos últimos anos, todos os brasileiros com quem converso – na rua, nas universidades, nos ônibus, nos táxis – dizem que o país atravessa um período favorável e que vai melhorar ainda mais no futuro. Não há dúvidas de que esse otimismo é comunicativo.
A voz do Brasil hoje é respeitada no mundo. Quase todos os europeus conhecem o nome de Lula, enquanto poucos saberiam dizer quem é o presidente do México. O país está prestes a se impor como uma das potências do século 21. Não somente o crescimento econômico é impressionante, como ele faz com que milhões de pessoas saiam da pobreza. É animador ver que esse “novo” ator global esteja resolvendo alguns dos seus problemas essenciais, oferecendo um exemplo para o resto do mundo.

A democracia brasileira é sem dúvida estável. O PSDB e o PT são verdadeiros partidos, com uma ideologia, uma estrutura organizacional, um programa mais ou menos definido, pessoas competentes nos seus quadros dirigentes etc. A imprensa, embora com frequência orientada à direita, é livre e de boa qualidade. A sociedade civil é ativa e diversificada. A partir dela, por exemplo, foi inventado o Orçamento Participativo, instrumento de gestão pública que se espalhou para o resto do mundo, deixando claro ser possível inverter o caminho das inovações políticas, que geralmente seguem do Norte para o Sul. O Fórum Social Mundial e o movimento altermundialista, que marcaram a agenda internacional, também nasceram nas cidades brasileiras. A chegada do filho de uma família pobre à liderança da oitava potência econômica mundial é um símbolo marcante, assim como a eleição de Obama nos Estados Unidos. Outras potências ascendentes, a começar pela China, apoiam-se num sistema político autoritário. Desse ponto de vista, o Brasil oferece uma alternativa exemplar.


Revolução pacífica

No plano social, a última década marcou um limiar considerável. Agora é mais legítimo reivindicar um salário mínimo que garanta uma renda decente, um Estado que assegure educação e um sistema de saúde de qualidade, uma condenação às discriminações culturais etc. As bases simbólicas e materiais do Estado social começam a ser impostas, e esse desenvolvimento oferece um ponto de apoio contra aqueles que pensam que crescimento econômico rima com capitalismo selvagem.

Neste ano, dentre os três principais candidatos à Presidência, duas foram mulheres. É um sinal de mudança. Hoje as jovens avançam mais nos seus estudos do que seus homólogos masculinos. O século 21, mais do que o precedente, será marcado pela igualdade entre homens e mulheres; e o Brasil parece estar comprometido com essa revolução – uma revolução do século 21, sem derramamento de sangue, diferentemente da queda da Bastilha ou da tomada do Palácio de Inverno.

No plano ecológico, por fim, o anúncio de uma redução progressiva do desflorestamento da Amazônia e o sucesso eleitoral de Marina são indícios, ainda que fracos, de que o país pode contribuir para que as gerações futuras não vivam num mundo degradado.

Será que esses sinais de esperança serão confirmados nos próximos anos? Será que as barreiras existentes serão ultrapassadas? Será que o país conseguirá enfrentar as ameaças ao desenvolvimento sustentável e social? Eis as condições para que o Brasil possa influenciar positivamente o futuro de um mundo globalizado – trazendo luz para uma velha Europa enclausurada nas dúvidas.


Yves Sintomer é professor de ciência política na Universidade Paris 8. Ao longo dos anos, ensinou e pesquisou em diversas universidades, entre elas Florença, Berlim, Frankfurt e Harvard. É autor de O poder ao povo: júris de cidadãos, sorteio e democracia participativa (Editora UFMG, 2010).

Tradução: André Rubião

In: ESTADO DE MINAS. PENSARBRASIL. 13 de novembro de 2010. p. 10-11.

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