País do presente

Recentes conquistas econômicas e sociais do Brasil justificam seu novo lugar no cenário internacional. Desafio agora é reformar a viciada cultura política nacional
Wilhelm Hofmeister
 
Edilson Rodrigues/CB/D.A Press
Guaribas, no Piauí, cidade símbolo do Bolsa Família, oito anos depois: muito o que fazer

Além de samba, futebol e carnaval, a repetição do mantra de que seria um país do futuro é um dos principais estereótipos sobre o Brasil. No entanto, esta afirmação perdeu o seu valor. O Brasil alcançou o seu futuro. Agora é um país do presente. Mas cuidado! Esta observação não é só um elogio dos avanços conseguidos. Também significa que a partir de agora não serão aceitas mais as velhas desculpas.

O Brasil mudou profundamente. Ainda que no dia a dia algumas estruturas e processos continuem a ser dominados por atitudes e práticas tradicionais – tanto no nível pessoal como na esfera da política – e pela burocracia, com a sua estrutura engessada. Se analisarmos um período maior, as profundas mudanças que o país experimentou ficam óbvias. Quase todos os brasileiros as notam em seu ambiente imediato. Isso se refere ao progresso econômico, à criação de empregos e à expansão da infraestrutura, mas, acima de tudo, é válido com respeito aos avanços sociais notáveis na redução do nível de pobres, no aumento das matrículas, na retenção de alunos nas escolas, entre outros fatores. Até mesmo na distribuição de renda tem havido alguns progressos. A desigualdade sempre foi destacada de forma particularmente crítica por observadores estrangeiros.

O pré-requisito para tal progresso foi a consolidação política e econômica, que se iniciou em meados dos anos 1990. Mesmo que o presidente Lula não goste dessa afirmação, as reformas de seu antecessor imediato, Fernando Henrique Cardoso, criaram as bases para a consolidação da democracia e do sistema econômico e pavimentaram o caminho para novas iniciativas do seu sucessor. O governo FHC realizou o aggiornamiento depois da experiência traumática com o fiasco político e moral do primeiro presidente democraticamente eleito depois da ditadura militar e a situação econômica desastrosa, com inflação galopante e o fracasso de subsequentes planos de emergência.

Mas fica reservado para o presidente Lula o lugar na história de quem pôs em prática uma verdadeira mudança social no país. Ainda que alguns dos seus compatriotas da velha elite tenham torcido o nariz por sua origem humilde, a deficiência de educação formal e o seu português com erros, fora das fronteiras nacionais o fato de que alguém pudesse sair da pobreza e chegar ao poder é considerado uma confirmação da democracia brasileira. Que essa percepção era um "ativo" para o Brasil, ninguém o reconheceu mais do que o próprio Lula.



A onda de apoio interno e externo foi um dos maiores sucessos políticos do presidente. Lula reconciliou parte significativa da sociedade brasileira com as reformas do seu antecessor imediato e com o sistema "capitalista" (que é um capitalismo bem “à brasileira”, com muita atuação do Estado na economia). O êxito não foi tanto a continuação e o aprofundamento das reformas de Cardoso, mas a adaptação delas pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pelos outros partidos da coalizão do novo governo e pelos sindicatos. Se os candidatos na campanha eleitoral em 2010 não eram capazes de destacar suas diferenças programáticas, é porque Lula, como o grande mediador, tem reconciliado as ex-forças antissistêmicas com a democracia representativa e o modelo econômico vigente.

A abertura econômica foi uma sorte para o Brasil. O país é um vencedor da globalização. Quando o presidente, por um lado, logo depois de assumir o cargo, no início de 2003, ainda serviu ao movimento antiglobalização, no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, com algumas frases do dicionário do anti-imperialismo, já tinha, por outro lado, escrito seu discurso para o dia seguinte. Que foi proferido ante os empresários e representantes do capital financeiro internacional no Fórum Econômico na Suíça. O novo presidente assegurou-lhes que o Brasil queria também entrar naquele clube.

Lula reconheceu a oportunidade da globalização. Ela assegurou um aumento tanto da demanda quanto dos preços dos produtos que o Brasil tem em abundância. Que a política de abertura de FHC e a modernização do setor agrícola foram um pré-requisito para essa conquista e que foram decididas com a forte oposição do PT, foi rapidamente esquecido. Somente o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) ainda não entendeu os sinais do novo tempo e ficou perturbando, enquanto os seus antigos aliados políticos já tinham partido com o barco da globalização.

Voz respeitada A nova riqueza aumentou a autoconfiança do Brasil e, com isto, a pretensão a um novo papel no sistema internacional. Depois de ter se concentrado por quatro séculos na área do lado de cá da linha de Tordesilhas, o Brasil, de repente, se transformou num ator hiperativo no cenário internacional. Sem dúvida, o país se tornou um membro muito respeitado em diversos fóruns multilaterais. Sua voz é ouvida. Mas o governo quer mais. O assento como membro permanente no Conselho de Segurança da ONU era a grande aspiração, ainda que não tenha ficado muito claro por que o persegue com tanto vigor. Para alcançar esse objetivo, estava disposto a algumas coligações e concessões problemáticas. A China, por exemplo, não respondeu com a mesma generosidade aos gestos do Brasil. A aliança com o presidente Ahmadinejad, do Irã, causou algumas irritações desde Washington até Berlim. Mas não atingiu o objetivo. Para alcançá-lo, o Brasil ainda se absteve várias vezes nas votações da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, quando se tentou condenar um país – incluindo Cuba – por violações dos direitos humanos. Uma atitude mais firme talvez não tivesse agradado aos Estados autoritários, mas poderia ter sido um reforço para muitos movimentos democráticos no mundo inteiro que esperavam a solidariedade de países como o Brasil e de líderes como o presidente Lula.

Também na América do Sul o Brasil não quis tomar posições abertas para defender a liberdade de imprensa ou as liberdades civis e políticas quando foram ameaçadas pelos governos neopopulistas. É certo, na sua própria região, tem-se que agir ainda com mais sensibilidade e lidar com o dilema de ser hoje uma economia muito poderosa que, justamente por isto, enfrenta alguma desconfiança dos países vizinhos. Gerar e manter confiança não é fácil. O Brasil não pode interferir nos assuntos internos dos seus vizinhos. Mas o presidente Lula é mestre de grandes gestos e, em alguns casos, esperava-se dele uma atitude mais clara em defesa de valores democráticos na região.

As expectativas frente ao Brasil cresceram. Isso não é somente reflexo do seu maior poder econômico, mas, sobretudo, resultado da consolidação da sua democracia. No entanto, essa democracia tem de continuar convivendo com alguns problemas estruturais que causam distorções problemáticas. A lei eleitoral é certamente uma fonte de algumas delas. Provoca os enormes custos das campanhas, que depois devem ser “refinanciados”. Também produz um parlamento fragmentado. Mesmo que permita a representação do pluralismo social no Congresso Nacional, a ausência de maiorias estáveis de governo leva continuamente a problemas de governança. O futuro deputado Tiririca pode ser um símbolo do pluralismo social representado no parlamento. Mas sua eleição não é também uma ofensa à ideia da democracia? No fim, ele próprio se recusou a fornecer informações claras sobre suas ideias e intenções políticas.

Infelizmente, a saída para os impasses das instituições políticas se deu por meio da corrupção. É um elemento sólido do sistema de governo brasileiro. Certamente isso não é apenas um problema no Brasil. Basta olhar as práticas de corrupção em outras democracias populosas, como a Índia, a Indonésia e os Estados Unidos. Não obstante, até agora ninguém conseguiu explicar por que o povo brasileiro quer seguir pagando os custos dessas práticas.

Desculpas não serão mais aceitas. Este é o preço que o Brasil tem de pagar pelo fato de ter alcançado o seu futuro e ter se transformado num país do presente. No passado, muitos defeitos podiam ser justificados pelo subdesenvolvimento e pelas deficiências herdadas. Isto não funciona mais. Na medida em que o país tem mostrado que pode dar passos grandes de desenvolvimento num espaço de tempo relativamente curto e que pode cerrar fileira frente aos grandes poderes internacionais, tem que responder com uma nova postura às reivindicações pelo ajuste da sua forma de fazer política. Os brasileiros têm uma intuição fina para isso.

O destino da Lei da Ficha Limpa tem mostrado mais uma vez o dilema das reformas políticas. A aprovação da lei foi um grande sucesso dos movimentos sociais e democráticos. No entanto, gerou impasses no âmbito do Judiciário, com ameaças de retrocesso.

Esse exemplo mostra que a chegada ao presente não significa que todas as distorções da política e da sociedade brasileira já teriam sido vencidas. Há muitos desafios pela frente, da educação à reforma da burocracia, entre outros. Ter chegado ao presente não significa o direito de ficar parado. Esperar não é saber. O país tem muito futuro pela frente.


Wilhelm Hofmeister é cientista político. De 1999 a 2009 foi diretor do Centro de Estudos da Fundação Konrad Adenauer, no Rio de Janeiro. Atualmente é diretor de um programa de diálogo político com a Ásia, com sede em Cingapura.
IN: ESTADO DE MINAS. PENSARBRASIL. 13 de novembro de 2010. p. 18-19.

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