A Revolta dos Malês

Malês era a designação dada aos africanos muçulmanos na Bahia do século XIX, os quais articularam um importante movimento envolvendo escravos e libertos, em inícios de 1835, que ficou conhecido como Revolta dos Malês.  






Desde novembro do ano anterior algumas das mais expressivas lideranças malês de Salvador, diante das ações repressivas das autoridades locais – por exemplo, a interrupção do Lailat al-Miraj (festa islâmica) em novembro de 1834 e, posteriormente, a destruição da “Mesquita” da Vitória –, começaram a preparar a revolta que deveria eclodir em 25 de janeiro. As denúncias feitas pelos libertos Domingos, Guilhermina e Sabina desencadearam uma série de medidas preventivas, tais como o reforço da guarda do palácio do presidente de província, o aumento do número das rondas noturnas nos distritos, o envio fragata Baiana para vigiar o mar de Salvador, a organização de patrulhas para revistar as casas onde residiam africanos, localizadas em Guadalupe. Tais medidas levaram à descoberta de uma reunião num sobrado da ladeira da Praça, onde cerca de 60 africanos realizavam uma ceia – prevista no calendário muçulmano – na qual possivelmente foram tomadas as últimas decisões sobre o levante. Depois de rechaçar o frágil ataque policial, o grupo saiu pelas ruas da cidade, antecipando a rebelião – prevista para eclodir somente às cinco horas da madrugada, quando os escravos iam às fontes pegar água.
Entre as condições que possibilitaram esse levante, vale lembrar a tradição das revoltas escravas na Bahia, acentuadas de fins do século XVIII a meados da década de 1830. Também a conjuntura geral apresentava um quadro complexo de tensões que marcaram a construção do Império, sobretudo no período regencial. Por fim, o contexto específico da Bahia e, em particular de Salvador, então marcado pela crise econômica e pela escassez que atingiam os segmentos pobres e miseráveis, livres, libertos e cativos da cidade, transformando-a em palco privilegiado de confrontos e embates.
SegundoJoão Reis [Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986], a rebelião de 1835 foi uma revolta escrava cujo sentido profundo deve ser buscado na articulação entre conflitos de classes, étnicos e religiosos. Embora dela tenham participado não apenas escravos, mas também libertos, Reis argumenta que foi possível construir uma identidade entre ambos os segmentos, baseada em experiências comuns: o próprio cativeiro, a experiência de trabalhadores nas ruas de Salvador em condições de vida muito parecidas e a discriminação racial, particularmente a sofrida pelos negros de origem africana. Além disso, segundo a Constituição de 1824, a exclusão da cidadania era definida não apenas pela condição de cativo, mas também pela origem estrangeira, de modo que libertos de origem africana se encontravam completamente excluídos da sociedade política. A viabilidade histórica para a construção de fortes redes de solidariedade entre cativos e libertos africanos em Salvador foi ainda reforçada pela proximidade étnica dos africanos da cidade – iorubas ou nagôs, jejes e haussás.
Segundo Reis, embora a conspiração tenha sido articulada pelos muçulmanos, o levante foi africano, pois os rebeldes partilhavam diferentes concepções e práticas religiosas. No grupo majoritário dos nagôs, predominavam os adeptos do candomblé. Os seguidores do islã eram provavelmente predominantes entre os haussás, mas também estavam entre os jejes e os nagôs. O universo diversificado das religiosidades africanas da Bahia da primeira metade do século XIX era marcado por inúmeras pontes que possibilitavam diálogos entre diferentes crenças, e isto pode ter sido decisivo para que o projeto da liderança malê tocasse aos não-muçulmanos. Projeto radical no sentido de destruir a dominação branca, que foi capaz de arregimentar ampla adesão de escravos e libertos africanos, ultrapassando o suposto conteúdo de guerra santa (jihad), por vezes atribuído à rebelião como seu mais importante traço. Alguns sugerem um possível plano de escravização de brancos e de mulatos ou crioulos, já que os segundos eram vistos como cúmplices dos senhores, mesmo se cativos. Os revoltosos pretendiam, pois, “construir uma Bahia só de africanos”.
Aexistência de um projeto e planejamento do levante expressa seguramente o caráter político do movimento com algumas estratégias especiais. A primeira delas refere-se à escolha da data para a eclosão da revolta: 25 de janeiro de 1835, domingo, dia da festa de Nossa Senhora da Guia, que levaria para o distante Bonfim grande parte da população livre de Salvador, além de expressivos contingentes do corpo policial incumbidos de “controlar os excessos do povo”. Nos domingos e feriados, os escravos urbanos desfrutavam de condições mais flexíveis de mobilidade pelas ruas da cidade, pois se afrouxava a vigilância dos senhores e da polícia. A data escolhida inscrevia-se, por outro lado, no final do mês do Ramadã (jejum), próximo da festa da “Noite de Glória” ou “Noite do Poder” (Lailat al-Qadr). Segundo a crença muçulmana, tratava-se de um período propício à revolta, já que os espíritos do mal e os poderes malignos estariam neutralizados pela proteção de Alá.
Os objetivos políticos dos revoltosos evidenciam-se ainda na estratégia de luta nas ruas da cidade, restringindo-se o alvo das agressões. Apesar da antecipação do levante, não houve apelo para a violência indiscriminada, não ocorreram invasões de casas, saques, incêndios, nem mesmo violência contra os senhores e suas famílias. As ações dos revoltosos voltaram-se exclusivamente para o enfrentamento das forças que os atacavam. Após violentos enfrentamentos nas ruas de Salvador, os rebeldes foram derrotados. Utilizaram basicamente instrumentos cortantes, enquanto a repressão usou armas de fogo.
A precipitação do movimento e a rápida articulação das forças policiais contribuíram decisivamente para estancar as adesões. Dentre os cerca de 22 mil africanos que na época compunham a população de Salvador, em torno de 600 aderiram ao levante. Numa estimativa conservadora mais de 500 pessoas foram punidas com açoites, prisões e deportações; 281 entre escravos e libertos acusados de participarem do movimento foram presos e, dos 16 africanos condenados à morte, foram executados os escravos nagôs Pedro, Gonçalo e Joaquim e o liberto carregador de cal Jorge da Cruz Barbosa (nagô, cujo nome africano era Ajahi). Morreram fuzilados, em 14 de maio de 1835, no campo da Pólvora, pois ninguém se dispôs a ser o algoz dos enforcamentos previstos em lei.”
(Engel, Magali G. “Revolta dos Malês”, in Vainfas, R. (org.) Dicionário do Brasil Imperial (1922-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, pp. 642-644.)
Sugestão de Atividades:
  • O texto acima pode ser dividido em 6 partes. Identifique no texto cada uma delas: Introdução; descrição dos preparativos e do início do levante; conjuntura do levante; sentido profundo do levante e seus promotores; planejamento do levante e luta nas ruas de salvador; repressão do levante. 
  • Quanto ao sentido profundo do levante e seus promotores, apesar da autora encampar uma determinada interpretação, ela não deixa de citar outra. Identificar a interpretação defendida pela autora, assim como a outra que ela cita.
  • Relacionar a escolha da data para a eclosão da revolta com uma característica da sociedade escravista no Brasil.
  • Identificar o teor do possível plano de “uma Bahia só de africanos”. 
  • Caracterizar o sentido da revolta do malês segundo a interpretação do historiador João Reis.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

As bolsas de mandinga

Alinhamento dos Chacras com o Pai Nosso

Fonseca - uma história de emoções