Detalhes de uma lenda



Detalhes de uma lenda:
Uma litografia de Rugendas sugere que o mito de Chico Rei, o monarca que foi escravizado, é mais antigo do que se supunha

Alessandro Dell’Aira


Certa vez, estudando a devoção por São Benedito em Angra dos Reis, estava refletindo sobre algumas páginas de Viagem no interior do Brasil, do naturalista austríaco Johann Emanuel Pohl (1782-1834). Ele visitou a cidade fluminense na segunda-feira de Páscoa de 1818, participando das festas dos negros para aquele santo. Alguns meses depois, em Traíras, Goiás, assistiu a outra festa de negros, em louvor a Santa Ifigênia. Decidi inserir um resumo de ambos os relatos num artigo que estava escrevendo sobre São Benedito para uma revista italiana. Como precisava de ilustrações adequadas, lembrei-me de uma litografia de Rugendas (1802-1858) sobre uma festa do Rosário num lugar não identificado.

Comprei O Brasil de Rugendas (edição italiana), com todas as litografias de Voyage Pittoresque dans le Brésil, derivadas de desenhos executados in loco entre 1821 e 1825. Ainda não sabia que a litografia original não era colorida. Mandei escanear aquela reprodução, a penúltima, para depois enviar o arquivo à revista italiana. Reparei que a litografia trazia uma legenda em francês: Fête de S.te Rosalie, Patrone des Nègres. Não me lembrava dela porque fica sempre omitida, ao pé da cena reproduzida em livros e museus. Fiquei surpreso com a coincidência, por ser Santa Rosália a padroeira de Palermo, capital da Sicília, onde, em 1589, morreu São Benedito.

Notei que atrás do grupo havia uma igreja numa elevação, parecida com o Morro da Cruz em Ouro Preto. Reza a lenda que aquela igreja, chamada também de Nossa Senhora dos Pretos do Alto da Cruz, foi construída entre 1733 e 1745, e foi paga pelos escravos com o ouro subtraído da Mina da Encardideira. Deduzi que havia um erro na legenda (S.te Rosalie em lugar de S.te Iphigénie), e que a litografia representava a festa dos negros de Ouro Preto para Santa Ifigênia, a mesma festa, até nos pormenores, vista e relatada em Traíras por Pohl em 1819.

(...)

Os escravos das minas veneraram Chico Rei como os gregos da época clássica veneraram os herois fundadores das Colônias. Como afirma Marina de Mello e Souza em Reis Negros no Brasil Escravista: "Representando um mito, um heroi-fundador o Rei Congo atribuia às comunidades que o elegia uma identidade que as ligava à África natal, ao mesmo tempo em que abria os espaços possíveis no seio da sociedade escravista.






In: Revista de História da Biblioteca Nacional

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