Circuitos do tráfico de escravos




“A colonização [...] organiza-se no sentido de promover a primitiva acumulação capitalista nos quadros da economia européia, ou noutros termos, estimular o progresso burguês nos quadros da sociedade ocidental.


É esse sentido profundo que articula todas as peças do sistema: assim, em primeiro lugar, o regime do comércio se desenvolve nos quadros do exclusivo metropolitano; daí, a produção colonial orientar-se para aqueles produtos indispensáveis ou complementares às economias centrais; enfim, a produção se organiza de molde a permitir o funcionamento global do sistema. Em outras palavras: não bastava produzir os produtos com procura crescente nos mercados europeus, era indispensável produzi-los de modo a que a sua comercialização promovesse estímulos à acumulação burguesa nas economias européias. Não se tratava apenas de produzir para o comércio, mas para uma forma especial de comércio – o comércio colonial; é, mais uma vez, o sentido último (aceleração da acumulação primitiva de capital), que comanda todo o processo da colonização. Ora, isto obrigava as economias coloniais a se organizarem de molde a permitir o funcionamento do sistema de exploração colonial, o que impunha a adoção de formas de trabalho compulsório ou na sua forma limite, o escravismo.
[...] Assim, enquanto na Europa dos séculos XVI, XVII e XVIII transitava-se da servidão feudal para o trabalho assalariado, que passou a dominar as relações de produção a partir da revolução industrial, no Ultramar, isto é, no cenário da europeização do mundo, o monstro da escravidão mais crua reaparecia com uma intensidade e desenvolvimento inéditos.[...]. Bem é verdade [...] que Marx dizia que as colônias acabam por revelar o segredo da sociedade capitalista...”
(Novais, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 2ª. ed. São Paulo: Hucitec, 1981, pp. 97-98)

“Efetivamente, nas condições históricas em que se processa a colonização da América, a implantação de formas compulsórias de trabalho decorria fundamentalmente da necessária adequação da empresa colonizadora aos mecanismos do Antigo Sistema Colonial, tendente a promover a primitiva acumulação capitalista na economia européia; do contrário, dada a abundância de um fator de produção (a terra), o resultado seria a constituição no Ultramar de núcleos europeus de povoamento, desenvolvendo uma economia de subsistência voltada para o seu próprio consumo, sem vinculação efetiva com os centros dinâmicos metropolitanos. Isto, entretanto, ficava fora dos impulsos expansionistas do capitalismo mercantil europeu, não respondia às suas necessidades. [...] Produzir para o mercado europeu nos quadros do comércio colonial tendentes a promover a acumulação primitiva de capital nas economias européias exigia formas compulsórias de trabalho, pois do contrário, ou não se produziria para o mercado europeu (os colonos povoadores desenvolveriam uma economia voltada para o próprio consumo), ou se se imaginasse uma produção exportadora organizada por empresários que assalariassem trabalho, os custos da produção seriam tais que impediriam a exploração colonial [...] (os salários dos produtores diretos tinham de ser de tal nível que compensassem a alternativa de eles se tornarem produtores autônomos de sua subsistência, evadindo-se do salariato: como poderiam, então, funcionar os mecanismos do ‘exclusivo’ comercial?)
Por outro lado, a produção colonial exportadora, no volume e no ritmo definido pelo mercado europeu, atendendo pois às necessidades do desenvolvimento capitalista, só se podia ajustar ao sistema colonial organizando-se como produção em larga escala, o que pressupunha amplos investimentos iniciais; com isso ficava também excluída a possibilidade de uma produção organizada à base de pequenos proprietários autônomos, que produzissem sua subsistência, exportando o pequeno excedente.”
(Idem, pp. 102-103)
“A introdução do escravo africano tem sido explicada de um lado, curiosamente, pela ‘inadaptação’ do índio à lavoura, de outro, pela oposição jesuítica à escravização do aborígine. Não resta dúvida que a pregação inaciana terá pesado na defesa dos indígenas, embora seja de notar, de passagem, que não conseguiu salvaguardá-los de todo: sempre que escasseavam os africanos (dificuldade de navegação no Atlântico, pela concorrência colonial, por exemplo) recorreu-se inapelavelmente à compulsão dos naturais; também é verdade que os negros não contaram com a mesma defesa [dos jesuítas]. O que nos parece porém indiscutível é que os indígenas foram também utilizados em determinados, e sobretudo na fase inicial; nem se podia colocar problema nenhum de maior ou menor ‘aptidão’ ao trabalho escravo, que disso é que se tratava. O que talvez tenha importado é a rarefação demográfica dos aborígines, e as dificuldades de seu apresamento, transporte, etc. Mas na ‘preferência’ pelo africano revela-se, cremos, mais uma vez, a engrenagem do sistema mercantilista de colonização; esta se processa [...] num sistema de relações tendentes a promover a acumulação primitiva na metrópole; ora, o tráfico negreiro, isto é, o abastecimento das colônias com escravos, abria um novo e importante setor do comércio colonial, enquanto o apresamento dos indígenas era um negócio interno da colônia. Assim, os ganhos comerciais resultantes da preação dos aborígines mantinham-se na colônia, com os colonos empenhados nesse ‘gênero de vida’; a acumulação gerada no comércio de africanos, entretanto, fluía para a metrópole, realizavam-na os mercadores metropolitanos, engajados no abastecimento dessa ‘mercadoria’. Esse talvez seja o segredo da melhor ‘adaptação’ do negro à lavoura... escravista. Paradoxalmente, é a partir do tráfico negreiro que se pode entender a escravidão africana colonial, e não o contrário.”
(Idem, pp. 104-105)




                                           Matéria a rota do tráfico de escravos, Revista Terra, Ed. Peixes.

A partir da leitura atenta dos trechos acima, peça para os alunos responderem às seguintes questões:
1 – Identifique qual o objeto de discussão do autor nos trechos acima.
2 – Podemos dizer que a argumentação do autor está estruturada em duas partes. Identifique-as.
2.1 – Na primeira parte, qual o ponto de vista que ele defende? Sintetize os argumentos que utiliza para sustentá-lo.
2.2 – Na segunda parte, qual o ponto de vista defendido pelo autor, e qual seu argumento central?
3 – Quais argumentos o autor utiliza para refutar a idéia de que o índio não se adaptava ao trabalho na lavoura?
4 – Em função de que todo o sistema colonial foi montado?
5 – Relacione a frase de Marx – “as colônias acabam por revelar o segredo da sociedade capitalista”, com o trecho abaixo, de uma conferência realizada em Oxford, em 1840, pelo professor H. Merivale.
O que transformou Liverpool e Manchester de cidades provincianas em cidades gigantescas? O que mantém hoje sua indústria sempre ativa, e sua rápida acumulação de riqueza?... Sua presente opulência se deve ao trabalho e sofrimento do negro, como se suas mãos tivessem construído as docas e fabricado as máquinas a vapor.
(citado em Huberman, Leo. História da riqueza do homem. Trad. Waltensir Dutra. 15ª. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979,p.171)
O autor trata da escravidão e do tráfico negreiro no sistema colonial. Em sua argumentação, na primeira parte, ele trata do por que da adoção do trabalho compulsório, da escravidão, na América Colonial. Para ele, a abundância de terras levaria à formação de pequenas propriedades voltadas para a subsistência e mercado interno o que, obviamente, não atendia ao objetivo central do empreendimento colonial: a transferência de riquezas para a economia européia; mesmo se estes pequenos proprietários destinassem à exportação uma parte da produção, esta não preencheria as necessidades de acumulação para o desenvolvimento do capitalismo nascente: este exigia altos investimentos para a constituição de uma produção em alta escala que assegurasse altas margens de lucro no comércio colonial; por fim, mesmo que se imaginasse uma produção exportadora organizada por empresários que assalariassem trabalho, os custos da produção seriam tais que impediriam a exploração colonial:os salários dos trabalhadores teriam de ser de tal monta que compensassem a alternativa de eles se tornarem pequenos produtores de sua subsistência. Assim, a adoção do trabalho escravo foi uma exigência da própria lógica do sistema, do imperativo da acumulação de capital na Europa. Na segunda parte, ele trata do por que da adoção da escravidão africana. Seu argumento central: o tráfico negreiro era um comércio a mais, e altamente lucrativo para os comerciantes europeus, favorecendo assim a transferência de riquezas para aquele continente, ou mais especificamente para a burguesia européia. Assim, para o autor, foram os altos lucros gerados pelo tráfico negreiro que determinaram a adoção da escravidão do africano. Quanto à questão da inadaptação do índio ao trabalho na lavoura, o autor mostra que além de ter realizado este trabalho na fase inicial da colonização – lembremos também do trabalho indígena nas missões jesuíticas –, sempre que escasseavam os africanos (dificuldade de navegação no Atlântico, pela concorrência colonial, por exemplo) recorreu-se inapelavelmente à escravização dos indígenas. Para o autor, todo o sistema colonial é organizado para atender à necessidade de acumulação de capitais na Europa, na promoção do desenvolvimento do capitalismo. Na origem e no cerne do capitalismo, sem disfarces, está a exploração, crua.

Glossário:
Trabalho compulsório: trabalho forçado.
“Compulsão dos naturais”: escravização dos indígenas
“Pregação inaciana”: pregação dos jesuítas; a ordem dos jesuítas, a Companhia de Jesus, foi fundada pelo espanhol Inácio de Loyola, em 1540.
Preação: do verbo prear; aprisionar, prender.


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