Originalidade inspirada pelo cotidiano

Profissionais da escrita revelam as estratégias para quem deseja tirar boas ideias do dia a dia para escrever um texto criativo
Carmen Guerreiro

A busca por fontes de inspiração já levou um sem-número de profissionais da escrita à loucura ante uma folha de papel ou tela em branco, à espera de um estopim criativo que desse início a um texto sagaz e estimulante. A resposta para a origem de boas ideias, no entanto, pode estar mais próxima de nós do que imaginamos: no cotidiano.

Segundo a psicóloga Denise Bragotto, pesquisadora em criatividade e escrita criativa, a explicação é até simples. A inspiração não é necessariamente um insight, uma revelação que surge a partir do nada. É um exercício de observação meticulosa e criteriosa do mundo a nossa volta e, enfim, a tradução dos fatos do dia a dia em um bom texto.

- Podemos beber das mais variadas fontes para encontrar ideias, porém é preciso ser um observador atento do mundo, saber acolher as ideias, mesmo que pareçam absurdas ou ridículas, e ter ampla bagagem de conhecimento sobre assuntos variados - afirma Denise.

Porque é preciso transpirar para se inspirar, a arte da "centelha de gênio" não é um dom, mas algo que podemos treinar. Segundo o publicitário Edson Marzo, redator na agência Estação Primeira e professor da disciplina criação/redação publicitária no curso de publicidade e propaganda da FAAP, é preciso estar alerta e sempre prestar atenção na matéria-prima que o cotidiano oferece.

De acordo com Marzo, existe sempre uma forma de surpreender e seduzir, de uma maneira inusitada, ao contar uma história que todos já conhecem.
- Ninguém reinventa a roda - diz.

Por isso, ele anda pelas ruas de ouvidos e olhos bem abertos, e lê até bula de remédio.

- Precisamos estar preparados para receber todas as informações, atentos e registrando tudo. Não podemos ter preconceito, porque a gente nunca sabe de onde pode vir a próxima ideia. Na publicidade, por exemplo. Se eu for chamado amanhã para fazer uma propaganda sobre sabão em pó, preciso ter uma bagagem para saber quem é o consumidor que compra esse produto, do que conversa, qual é o seu vocabulário, como se veste, como recomendaria o sabão para uma amiga etc. - observa.

Centelha
Para Verissimo, o cotidiano é sempre germe do texto, mas desempenho depende do animo

A dica, no entanto, não funciona só no ramo da publicidade. O escritor e cronista Luis Fernando Verissimo afirma que a inspiração está por toda parte.

- Às vezes uma frase ouvida na rua pode detonar um processo de criação que vai acabar numa crônica. Às vezes é um assunto que está no ar e você quase que se obriga a comentar. Às vezes é pura invenção. Não há lugares ou situações que inspirem mais do que outros - aponta o escritor.

Uma das fontes de ideias para o romancista Moacyr Scliar é sua outra profissão, a de médico.

- A vivência da medicina me proporciona abundante inspiração, porque sua prática significa mergulhar na condição humana de uma forma até certo ponto privilegiada, já que, quando uma pessoa está muito doente, todas aquelas máscaras que costumamos usar no cotidiano caem e a pessoa se revela tal como é. Para um escritor, essa é uma oportunidade verdadeiramente única - explica.

Vivência
Para Scliar, é preciso buscar situações curiosas e emocionantes que ilustrem uma história

Para escrever um romance, Scliar afirma que suas fontes são mais amplas, por exemplo, um episódio da História, um personagem marcante, uma passagem da Bíblia - que consulta não com fins religiosos, mas de estudo. Quando o texto não é ficcional, sua matéria-prima criativa é o jornal.

- Busco situações inusitadas, curiosas, emocionantes que possam gerar uma história - conta.


Segundo Luis Fernando Verissimo, é fato que o cotidiano é uma fonte rica de inspiração, mas não existe receita para traduzir uma boa ideia em um texto criativo.

- O evento ou a ideia serve como germe da crônica, mas como o texto vai se desenvolver depende da disposição do autor no momento, do seu tempo ou falta de tempo etc.

Como acontece com qualquer tipo de semente, você só vai saber o que era quando a planta crescer. No caso, quando a crônica ficar pronta - afirma.  

Apesar dos fatores mencionados pelo cronista, alguns especialistas e profissionais que trabalham com a escrita em seu dia a dia reuniram, nas próximas páginas, algumas dicas de como aproveitar fatos da nossa rotina para escrever um texto instigante.

1 Ler muito e acumular conhecimento
Não é segredo dizer que quem lê mais tem mais ferramentas para escrever melhor. Para o escritor Moacyr Scliar, ler textos científicos como médico o ajudou ao longo dos anos a escrever de maneira mais estimulante.

- O texto médico se caracteriza pela objetividade, pela síntese, pela necessidade de transmitir informações importantes em poucas linhas - aponta.

A leitura permite que o escritor forme uma bagagem cultural e de conhecimentos gerais que é essencial para redigir um texto criativo.

- Para construir uma obra a pessoa precisa de visão de mundo, crítica, experiência. É preciso estudar muito para entender o que acontece no planeta com visão crítica e saber traduzir isso para o seu trabalho - diz o cartunista André Dahmer, autor da tirinha Malvados.

2 Contar fatos banais de forma interessante
O trunfo de inspirar-se no cotidiano é saber extrair uma ideia original de uma situação que parece, muitas vezes, banal.

- Fernando Sabino escreveu uma crônica na qual ele está num restaurante e entram três pessoas de origem humilde: um homem, uma mulher e uma criança. Eles se sentam à mesa com um bolo pequeno, e descobrimos que se trata do aniversário da menina. Isso proporciona ao cronista um comentário que mobiliza as emoções, sentimentos e ideias do leitor para que ele veja o cotidiano de outra maneira, pois provavelmente outras pessoas que estavam no restaurante naquele momento não escreveram nem repararam na situação, mas ao escrever sobre o ocorrido ele mobilizou o sentimento dos leitores para que tivessem uma visão nova de uma realidade aparentemente banal - conta Moacyr Scliar.

Lembrando-se de Fernando Pessoa, a psicóloga Denise Bragotto diz que "a realidade é inspiradora, desde que haja sensibilidade para captar a riqueza das coisas que parecem insignificantes".

3 Usar o senso comum de forma criativa
A roteirista Cristina Fonseca, escritora e cinevideodocumentarista, professora de roteiro do Senac-SP e do curso de cinema da Casa das Rosas, acredita que quem escreve não pode ter medo de lidar com o senso comum, mas tentar sempre transformá-lo em algo singular.

- É preciso tentar ir para o incomum, para o extraordinário. A realidade em uma obra, para ser forte tanto quanto ela é no real, sempre tem de ser traduzida por uma emoção forte. Se você está falando de uma guerra, pode usar uma escada cheia de sangue, por exemplo - afirma.

Uma rosa, segundo a roteirista, é um clichê, mas pode ser usada da maneira certa para despertar emoções que fogem do senso comum.

4 Aguardar o melhor momento, lugar e estado de espírito para trabalhar
Não estamos no nosso pico de criatividade 24 horas por dia. É por isso que quem escreve deve estar atento ao seu humor, ao local e em que situação vai redigir o texto.

- Nunca entendo esses rapazes de São Paulo que se definem como criativos mas trabalham o dia inteiro confinados em uma sala de escritório - exemplifica o cartunista Dahmer. Ainda que trabalhe com prazos e horários, ele segue um método que chama de "pescaria".

- É uma janela de inspiração, como um campeonato de surfe de ondas grandes, que precisa durar 20 dias para pegar as melhores ondas e o melhor mar. Às vezes minha janela dura três dias, às vezes uma semana. Preciso esperar o melhor momento - conta.

Para estimular a própria criatividade, Dahmer gosta de pedalar, o que considera uma meditação.

- A bicicleta esvazia minha cabeça de todo o raciocínio lógico, que é diferente da pressão de estar sentado em frente a um computador. Acho mais importante esvaziar a cabeça para fazer um bom trabalho do que enchê-la de referências - opina.

5 Usar figuras de linguagem
- Precisamos traduzir a realidade por metáforas, metonímias e sinédoques - analisa a roteirista Cristina Fonseca.

Ela defende que se referir a fatos cotidianos por meio de figuras de linguagem os torna mais instigantes. Em vez de algo que é vermelho, por exemplo, poderíamos associar o conceito à violência, à paixão, à luxúria.

- Uma metáfora vale muitas vezes mais do que mil palavras, então um artifício importante é saber transformar mil palavras em uma metáfora - diz.

6 Estar aberto a novas experiências
De acordo com a psicóloga Denise Bragotto, é comum jornalistas e escritores passarem deliberadamente por vivências específicas com a finalidade de buscar inspiração para o seu trabalho.

- Lembro-me particularmente de uma experiência contada por um ex-aluno. Com o objetivo de produzir um texto criativo, posicionou-se num semáforo para oferecer dinheiro aos motoristas que trafegavam pelo local. Essa perspectiva incomum serviu como fonte inspiradora para um texto interessante, crítico e divertido - conta.

A consultora Gisela Kassoy, especialista em criatividade, inovação e adoção de mudanças, sugere que, como fonte de inspiração, o escritor converse com pessoas distantes de sua realidade, com valores e hábitos bem diferentes, "mas olhar com curiosidade, sem julgar".

- É importante buscar sempre o que há de diferente entre situações parecidas, sem categorizar coisas semelhantes em valas comuns. A chave é ser curioso. Observar o cotidiano com olhos novos é essencial, como se fôssemos marcianos. As descobertas são impressionantes. Se não funcionar, pode-se tentar mudar a rotina, passar a observar (e de preferência viver) o cotidiano de outros - afirma.

7 Ser um observador atento
A chave principal para encontrar boas ideias no cotidiano é ser um bom observador e estar sempre atento. Sem isso, nos fechamos para pessoas e acontecimentos aparentemente triviais, mas com grande valor para um texto. O publicitário Edson Marzo observa que a ideia inspiradora pode vir quando a pessoa estiver em qualquer lugar, pode ser o cinema, lendo o jornal, conversando com os amigos.

- Se, no caso da publicidade, você precisa vender um serviço bancário, onde está sua
fonte de informação? Pode ser em um café, quando você ouvir alguém reclamando ou com uma dúvida - diz.

André Dahmer conta que às vezes passa a noite conversando com amigos e sente que perdeu o tempo em que poderia ter trabalhado em três tirinhas.

- Mas a verdade é que o exercício criativo daquela situação é material de trabalho. Só tomo o cuidado para não perder o registro de tudo. Pego a essência da ideia e, chegando em casa, desenvolvo - explica.

8 Anotar ideias
Ter uma boa ideia e perdê-la por ter esquecido de registrá-la é um desperdício. Por isso a especialista em criatividade Gisela Kassoy alerta que é essencial anotar tudo o que vier à mente, como um brainstorm individual e por escrito.

- Se for o caso, pode deixar um caderninho perto do chuveiro. Num segundo momento, o ideal é colocar tudo no computador, sem grandes preocupações em relação à qualidade do texto. Finalmente, a pessoa deve redigir cuidando da forma. Se empacar, responda a si mesmo: "O que eu quero dizer com isso?" e, se não tiver certeza se o texto está bom, leia-o em voz alta - sugere.

9 Exercícios para estimular a criatividade
Gisela Kassoy realiza workshops de criatividade em empresas e sugere que as pessoas desafiem todo o seu conhecimento de mundo, passando a questionar o porquê de tudo o que sabem, até mesmo de questões aparentemente óbvias.

- Para um bebê, ver seu pai andar pode parecer tão óbvio ou tão mágico quanto vê-lo voar. Com dois anos de idade, qualquer criança já sabe que seu pai não voa. Ou seja, as pessoas acreditam que sabem tudo o que não vai dar certo. Recomendo um pouco desse olhar de bebê - diz.

Em consequência, as pessoas podem encontrar tesouros como matéria-prima para seus textos onde achavam que só havia trivialidade. A chave é procurar maneiras de enxergar tudo aquilo que consideramos saber sob uma nova perspectiva. Caso a tarefa pareça muito complicada para cumprir individualmente, existem hoje diversos cursos de escrita criativa que desafiam e estimulam os participantes dessa forma.

10 Aprender a filtrar o excesso de informações
- Já faz 17 anos que escrevo para o jornal Folha de S.Paulo e nunca me faltou inspiração. Ao contrário, meu problema é escolher entre várias possibilidades - revela o escritor Moacyr Scliar.

Na era da comunicação o difícil muitas vezes não é encontrar matéria-prima para um texto, e sim saber separar o que pode ser útil do que não é.

- Excesso de informação não é qualidade, é quantidade. Em um roteiro, menos é mais. Às vezes basta um depoimento para dizer tudo o que a gente quer dizer - aponta Cristina Fonseca.

Denise Bragotto olha pelo lado positivo: quanto maior a quantidade de ideias, maior é a chance de encontrar uma boa inspiração. Basta fazer exercícios de seleção do que vale ou não.

- Os exercícios de geração de ideias, como brainstorms, são indispensáveis quando se fala em criatividade. Eles abrem espaço para novas possibilidades e para a fermentação das ideias, antes de selecionar aquelas que têm maior potencial para compor o texto. A seleção de ideias requer pensamento convergente, que é lógico, objetivo e racional - ensina.

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