Lobos em pele de ovelha

As obras antijudaicas e anti-semitas que circulavam no Brasil colonial

difundiam o preconceito também contra cristãos-novos

“Quantos com capa cristã / professam o judaísmo, / mostrando hipocritamente /devoção à Lei de Cristo! // Quantos com pele de ovelha / são lobos enfurecidos, / ladrões, falsos, e aleivosos, / embusteiros, e assassinos!”

É assim que um dos grandes poetas do século XVII luso-americano, Gregório de Matos, faz uso de alguns estereótipos para denegrir certos personagens da sociedade baiana de sua época. Esses estereótipos eram difundidos por um ramo pouco conhecido e até insuspeitado da produção literária do Antigo Regime luso-brasileiro: o da literatura de polêmica antijudaica.

A questão dos descendentes dos judeus – os chamados cristãos-novos – teve grande importância durante quase toda a época moderna. Este problema, a princípio aparentemente religioso, tomou formas sociais e políticas de grande impacto na história do mundo português, e a produção literária que tratava especificamente do tema ganhou assim uma enorme importância quando comparada, por exemplo, às obras que tratavam do Islã ou até do protestantismo.

Mas quais as razões que fizeram dos cristãos-novos um problema tão grande e sem solução até a segunda metade do século XVIII?


Primeiramente, os judeus foram convertidos à força em Portugal no ano de 1497. Isto tornou seu processo de assimilação extremamente difícil. Em segundo lugar, faltou uma política régia de longo prazo que promovesse essa assimilação – tanto para que os judeus e seus descendentes se tornassem todos bons católicos, quanto para que o resto da população, acostumada a se ver como diferente dos judeus, os aceitasse como seus iguais. Ao contrário, tanto o Estado quanto a Igreja acabaram fazendo o máximo para que esta assimilação não acontecesse, mantendo a diferença entre cristão-novo e cristão-velho.

Esta distinção surgiu na Espanha em meados do século XV e começou a ser aplicada em Portugal em 1514, ganhando força especialmente no início do século XVII. Os “estatutos de pureza de sangue” proibiam aos cristãos-novos – e também aos negros, ciganos e índios – o acesso a vários cargos políticos ou da Igreja, a diversas irmandades, às ordens militares. Dificultou o acesso à universidade e até tentou impedir os casamentos entre cristãos-novos e cristãos-velhos. Finalmente, a Inquisição foi criada em Portugal em 1537 para perseguir os cristãos-novos que continuassem a seguir o judaísmo e acabou por ser também um importante motor para a perpetuação do problema. Ao ampliar a importância dos chamados “judaizantes”, aqueles que ainda professavam ou guardavam os ritos judaicos de forma velada, e ao colar nas pessoas julgadas e nas suas famílias uma marca inapagável, ligando-as à heresia, a Inquisição se transformou, nas palavras do padre Antônio Vieira, numa “fábrica de judeus”, que fazia de quase todo cristão-novo um judaizante, fosse ele bom católico ou não. Os métodos jurídicos deste tribunal, que prestava mais atenção à quantidade do que à qualidade das provas, fazia uso da tortura e via a delação de outras pessoas pelo réu como o principal meio de confissão, também contribuíram diretamente para isso.

Por conta dessas questões e mecanismos ligados à pureza de sangue, pouco a pouco o tradicional discurso religioso antijudaico herdado da Idade Média foi se transformando em discurso racial anticristão-novo. Mas a legislação relacionada aos estatutos de pureza de sangue transmitia tão-somente o próprio preconceito, fixo, sem explicações detalhadas sobre seus fundamentos ou sem mencionar as origens desse preconceito.

As origens e justificativas, tanto teológicas quanto históricas, aparecem, sobretudo, em livros, memoriais e panfletos que veiculavam a imagem terrivelmente negativa dos cristãos-novos que vigorou durante todo o Antigo Regime português. Estes textos transmitiram preconceitos antijudaicos, às vezes propositalmente – como no caso de obras que tinham como único objetivo segregar os descendentes dos judeus –, mas às vezes também secundariamente, ligados a outros contextos. Podia ser uma obra apologética, em louvor e em defesa do catolicismo e que usava o judaísmo como contraponto, para mostrar o que acontecia com os que não seguissem o que dizia a Igreja. Podia ser um sermão de auto-da-fé, como um dos setenta que foram publicados entre 1604 e 1753, em que o pregador, tendo como auditório inicial as pessoas sentenciadas pela Inquisição, descrevia os erros, sobretudo judaicos que eram então julgados. Podia ser um tratado que visava à conversão sincera dos judaizantes ao catolicismo. Podia ser, enfim, um texto que tinha como objetivo alertar os bons católicos sobre o perigo que, segundo os autores, os cristãos-novos representavam do ponto de vista religioso e político, e que chegava a pregar a expulsão de boa parte deles dos domínios de Portugal.

Mas essas obras chegaram ao lado de cá do Atlântico? Como não havia prelos no Brasil até 1808, elas eram impressas em Portugal, o que não impedia que circulassem, possivelmente também na forma de manuscritos, ou até mesmo que fossem produzidas aqui e depois impressas em Portugal. Apesar de haver poucas provas da existência física de obras desse tipo no Brasil colônia, a presença das idéias que elas veiculavam é difícil de ser contestada.

Consta do testamento deixado em 1780 pelo padre José Rodrigues da Cruz, de São João del-Rei, que ele possuía uma obra, na época já bastante antiga, publicada pela primeira vez em 1622, em Lisboa. Trata-se do Breve discurso contra a herética perfídia do judaísmo, continuada nos presentes apostatas de nossa santa Fé, com o que convém a expulsão dos delinqüentes nela dos Reinos de sua Majestade, com suas mulheres e filhos, de um certo Vicente da Costa Mattos. O livro foi reeditado com modificações no ano seguinte, e mais uma vez publicado em 1663, o que revela ter alcançado certo sucesso, apesar de ter provocado uma boa dose de polêmica no lançamento da sua primeira edição. Pode-se dizer que Costa Mattos, e outros autores de obras do mesmo estilo, só fazem acompanhar os modelos tradicionais da polêmica religiosa, que remontam aos próprios Evangelhos. Mas para eles, os judeus (e seus descendentes) também foram punidos com taras físicas, que vão do nariz avantajado ao resquício de um rabo animalesco, passando pelo fato de não serem capazes de cuspir… Boa parte destas lendas já circulava desde a antiguidade, mas a novidade aqui é que, enquanto anteriormente o batismo limpava os judeus de todas essas taras, no mundo ibérico elas se perpetuaram nos descendentes convertidos dos judeus, ou seja, nos cristãos-novos, estando assim ligadas não à crença religiosa professada, mas à raça, isto é, ao sangue transmitido de geração para geração.

Para os autores, toda esta decadência e a perfídia acabavam refletidas no próprio comportamento do povo judeu. Após a vinda do Cristo, os judeus eram não só um povo sem Fé, nem Lei, nem Rei, mas ainda recusavam aqueles que os cristãos lhes ofereciam de modo tão drástico. Assim, eram naturalmente mentirosos, traidores, inimigos jurados dos cristãos, avarentos, cruéis, perjuros, orgulhosos e, finalmente, a causa de todos os males existentes no mundo: da prática do incesto à da sodomia, da redação do Alcorão, o texto sagrado dos muçulmanos, à criação de várias heresias.

Esta literatura, sobretudo a dos anos 1620 e 1630, estava intimamente relacionada ao contexto político da época, em que os opositores do “primeiro-ministro” do rei Felipe IV, o conde-duque de Olivares, utilizaram a questão dos cristãos-novos para atacá-lo. De fato, Olivares se apoiava nos banqueiros cristãos-novos para levar adiante seus planos de centralização da administração dos reinos do monarca Habsburgo, entre os quais contamos Portugal, durante o período que ficou conhecido como União Ibérica (1580 a 1640). Mas as escaramuças políticas de Madri respingaram também na América portuguesa, e podemos achar exemplos da aceitação de alguns desses postulados racistas que afirmam a transmissão genealógica de taras físicas ou morais em terras brasileiras, como os versos de Gregório de Matos.

Essa imagem racista e preconceituosa dos judeus como “falsos, e aleivosos, / embusteiros, e assassinos”, persiste ainda hoje no termo “judiar” como sinônimo de maltratar, zombar, isto é, fazer o mesmo que tradicionalmente se dizia que os judeus haviam feito com Jesus, sem que se possa, contudo, ligar diretamente a subsistência do termo – surgido neste sentido, segundo o dicionário Houaiss, em fins do século XVIII – a uma influência da literatura de que tratamos aqui. Mas existem outros exemplos. Invertendo o sentido da lenda, num registro burlesco e positivo, o escritor paraibano Ariano Suassuna menciona a subsistência do mito do “cotoco” no seu Romance d’A Pedra do Reino, de 1970: “é por isso, também, que os pernambucanos inventaram essa história. Segundo eles, todos os paraibanos têm sangue judaico e, conseqüentemente, parte com o Diabo, motivo pelo qual herdaram um pequeno pedaço de rabo, o cotoco, transmitido pelo sangue judaico ancestral. Isto […] não deixa, também, de ser um elogio, porque, segundo eles, é o cotoco diabólico que nos torna irrequietos, ativos e astutos. É um elogio à incansável atividade paraibana!”

Ainda no século XVII, o padre Manoel Calado, autor de uma importante obra redigida em Portugal, mas que relata fatos acontecidos em Pernambuco, mostra ter lido as obras do gênero quando descreve o modo como converteu ao catolicismo dois judaizantes que iam ser enforcados pelas tropas portuguesas. Neste trecho do seu Valeroso Lucideno, publicado em 1648, ele diz ter debatido com os pobres condenados “todas as dúvidas que os Judeus põem contra os Cristãos, e todos os passos da sagrada Escritura que alegam para sustentar sua pertinácia”, como vários tratados de polêmica da mesma época, terminando seu trágico relato com a descrição de um cerimonial bastante próximo daquele dos autos-de-fé inquisitoriais.

Já no século seguinte, mesmo que de modo bastante indireto, pode-se mencionar o Compêndio narrativo do peregrino da América, do baiano Nuno Marques Pereira, publicado em 1731. Nesta obra, que trata dos vários “vícios” que assolavam a América portuguesa, o autor não pôde deixar de mencionar os cristãos-novos, identificados diretamente com seus antepassados judeus, pois Marques Pereira, como era habitual, não fazia a distinção entre judeus e cristãos-novos. Segundo ele, os judeus eram castigados sobretudo por serem “murmuradores”, isto é, por falarem mal “de Cristo Senhor nosso e de seus santos e ministros”, sendo por isso perseguidos pela Inquisição, “aborrecidos e vituperados” por todos e em seguida castigados no inferno. Apesar dessa imagem negativa do cristão-novo que perpassa o Compêndio narrativo, esta obra não pode ser nem de longe considerada um tratado antijudaico. Poderia ser enquadrada no âmbito de uma segunda corrente dessa literatura de polêmica menos ligada ao problema político dos cristãos-novos,

como o tratado de Costa Mattos, e mais preocupada com a questão religiosa da conversão sincera dos judaizantes. Seu autor justifica suas palavras como um modo de “adverti-los e avisá-los para ver se se pode curar esta terrível enfermidade”.

É assim que começam a surgir em Portugal algumas obras de caráter evangélico a partir da segunda metade do século XVII, mesmo que um certo ranço anti-semita não possa ser completamente dissociado delas. Esta corrente mais evangélica se ilustrou aqui no Brasil com certa força – mesmo que seja difícil esquadrinhar sua influência –, por meio da publicação, pelo arcebispo da Bahia, D. Sebastião Monteiro da Vide, em 1720, em Lisboa, de Sinagoga desenganada. Esta obra, traduzida do italiano pelo jesuíta Giovanni Antonio Andreoni (conhecido como Antonil, fino analista da economia e da sociedade coloniais, na sua obra Cultura e opulência do Brasil), não faz o amálgama tão comum entre todas as pessoas de origem judaica. Vários trechos de Sinagoga mostram que a obra não se adaptava à realidade do Brasil. Ela havia sido escrita, na verdade, voltada para a conversão dos judeus na Itália, e sua tradução no mundo português parece indicar que os responsáveis por sua publicação não eram, até certo ponto, coniventes com a ideologia racista dominante. Contudo, na única menção ao contexto local, feita pelo tradutor na sua dedicatória aos inquisidores, surge também o preconceito racial ibérico. Andreoni liga o “sangue da nação Hebréia” à facilidade para cair na heresia – o que não deixa de ser uma pequena concessão aos hábitos locais, ou, quem sabe, um automatismo de um italiano que vivia há muito entre os portugueses.

Então, não só estas obras circularam no Brasil colônia – e como seria diferente com a intensa movimentação de pessoas e de bens entre esta porção do mundo português e o seu centro, principal fornecedor de obras do gênero –, como também influenciaram os eruditos locais, e pelo menos uma delas foi produzida aqui. Mais do que isso, a literatura de polêmica antijudaica e anti-semita parece ter influenciado de modo bastante duradouro a imagem consciente ou inconsciente do judeu deste lado do Atlântico na época moderna.

BRUNO FEITLER é pesquisador da Fapesp junto à Cátedra Jaime Cortesão (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo) e autor de Inquisition, juifs et nouveaux-chrétiens au Brésil. Le Nordeste, XVIIe-XVIIIe siècles, Lovaina, 2003.

Leia mais In: Revista de História

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