No rastro de Peter Lund

MG terá de volta peças que dinamarquês achou em Lagoa Santa e enviou a Copenhague, em 1845. Abertura de parque hoje inicia resgate ambiental e cultural de importante região do Brasil
Cristiana Andrade

Peter Lund formado em
Medicina, se interessou em
Botânica e partiu para
expedições, até se fixar
no Brasil, em 1833.
Uma lacuna de 165 anos. Foi em 1845 que o paleontólogo dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880) enviou ao seu país – formalmente como presente ao Rei Christian VIII, segundo o curador da coleção de Zoologia Quaternária do Museu de Zoologia da Universidade de Copenhague, Kim Aaris-Sorensen – uma vasta e rica coleção de ossos fossilizados de animais e de homens das cavernas. O material não foi escavado em solo dinamarquês, mas numa terra distante, de vegetação, clima e fauna totalmente diferentes. Nos arredores de Lagoa Santa, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Lund encontrou vestígios de seres humanos ancestrais e animais diversos, como a preguiça-gigante, que viveu há cerca de 8 mil anos no território que muito mais tarde se tornaria Minas Gerais.



Crânio e mandíbula de um 'homem de Lagoa Santa'


Na Lapa Nova de Maquiné, ele encontra desenhos rupestres e o mais importante VESTÍGIOS DO HOMEM FÓSSIL AMERICANO.
Lund era adepto da teoria catastrofista, segundo a qual desastres naturais teriam extinguido as sucessivas formas de vida. Negava, portanto, a evolução proposta por Lamarck e sistematizada posteriormente por Darwin. Ele já percebia, porém, semelhanças entre espécies fósseis e atuais.

Do ponto de vista antropomórfico, os fósseis descobertos por Lund eram bastante distantes dos indígenas americanos e próximos dos negróides. Suas características físicas eram homogêneas, o que indica seu isolamento genético (ele não teria se misturado a grupos diferentes). Essa identidade configurou o perfil daquele que ficou conhecido como o 'homem de Lagoa Santa'.

Entre as ossadas de Lagoa Santa, somente as mais antigas -- datadas entre 11 e oito mil anos -- possuem características negróides; os fósseis a partir de oito mil anos já apresentam características mongolóides. O desaparecimento da raça negróide que habitou a região e seu relacionamento ou não com os mongolóides que vieram a seguir e dominaram o continente permanecem não esclarecidos.

Pouco depois da descoberta do homem de Lagoa Santa, Lund abandonaria suas pesquisas. Em carta à família, atribuiu a renúncia a problemas financeiros. Cástor Cartelle propõe outra justificativa. "Lund ficou um tanto desorientado com a existência do homem pré-diluviano e sincrônico da fauna recente e extinta. Acredito que o fato de comprovar que sua perspectiva catastrofista não tinha sustentação foi uma das causas que o impeliram a abandonar a vida científica." A extrema religiosidade também é considerada por alguns autores como motivo do precoce abandono da ciência.
O frondoso pequizeiro marca o local onde Lund está enterrado

Lund faleceu a 25 de maio de 1880, três semanas antes de completar 79 anos. Como Nereo Cecílo escreve em carta à família na Dinamarca, a última enfermidade durou cerca de dois meses. Ao fim, Lund delirava. "Dizia que o que ele mais amava eram as ciências e sobretudo a música," Nereo relata. "Suas últimas palavras foram: amor, amor, amor."


 
 

Agora, parte desse rico acervo, que ainda inclui desenhos, mapas e manuscritos dos achados, como os referentes a feras até então desconhecidas, como o tigre-dente-de-sabre, vai voltar ao seu local de origem e integrar um grande projeto de educação ambiental, social e de turismo em Minas. O termo de empréstimo de cerca de 70 peças escavadas por Lund, fruto de convênio entre os governos de Minas Gerais e da Dinamarca, está em fase final de análise e deve ser oficializado até o fim do ano.

“A coleção de Lund é parte da história dinamarquesa, tanto quanto da brasileira. Seus estudos no exterior contribuíram fortemente para a formação da nossa moderna identidade. Além da oportunidade de apresentar no Brasil seus fósseis de mamíferos, pássaros, répteis, primatas, roedores e do próprio homem, há o projeto de montarmos uma nova exibição no Museu de História Natural da Dinamarca com o material. Essa coleção, conhecida no meio científico mundial, é uma das mais representativas e importantes da Era Quaternária do mundo”, diz Aaris-Sorensen, de 63 anos e desde 1980 à frente da curadoria da coleção de Zoologia Quaternária do museu dinamarquês.

“Em Minas, as peças serão expostas em um pavilhão a ser construído em frente à Gruta da Lapinha. O projeto integra a Rota Lund e tem seu primeiro passo dado hoje, com a inauguração do Parque Estadual do Sumidouro. Além da unidade de conservação, o investimento de R$ 16 milhões prevê a revitalização das grutas de Maquiné, Lapinha e Rei do Mato, com completa infraestrutura para visitantes. Nosso objetivo é promover a valorização ambiental, cultural e social da região”, explica a gestora do projeto no estado, Natasha Torres Gil Nunes.

A história de Lund poderia ter sido diferente, mas quis o destino, ou alguma dessas razões inexplicáveis, que ele aportasse em terras mineiras meio por acaso. O curador da Coleção de Paleontologia do Museu de Ciências Naturais da PUC Minas, Cástor Cartelle, um dos idealizadores da Rota Lund, conta que, entre 1829 e 1832, o dinamarquês largou a medicina, interessou-se pelas ciências naturais e viajou pela Europa, até chegar ao Brasil, fixando residência no Rio de Janeiro, em 1833. “Naquele ano, viajou com o alemão Ludwig Riedel em uma expedição botânica, passando pelo Rio, Goiás, Minas, até chegarem a Curvelo, em 1834. Lá, conheceram casualmente o dinamarquês Peter Claussen, que explorava salitre em cavernas na região de Lagoa Santa”, conta Cartelle. Claussen mostrou à dupla fósseis achados nas grutas e, diante de terreno tão grande e fértil a ser explorado, Lund iniciou seu trabalho como paleontólogo.
A FAMÍLIA
DE LUZIA
LUZIA - Em 1975, missão francesa descobre o esqueleto com traços negróides, de mulher que seria a mais antiga das Américas: 11, 5 anos.

Em 1845, Lund envia sua coleção de fósseis a Copenhague e passa a se dedicar a dar aulas e receber estudantes dinamarqueses em Lagoa Santa. Em 1880, ele morre na cidade da Grande BH onde conduziu suas pesquisas, que despertaram o interesse científico de outros pesquisadores. Um exemplo é a missão francesa chefiada pela antropóloga Annette Laming-Emperaire, que em 1975 descobriu Luzia, até hoje o ser humano mais antigo do continente, com cerca de 11,5 mil anos, revelado pelo esqueleto de traços negroides achado no sítio arqueológico da Lapa Vermelha, em Lagoa Santa. Décadas depois, o local atrairia o biólogo e antropólogo Walter Neves, do Laboratório de Estudos Evolutivos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, que busca ‘parentes’ de Luzia.

“A Lapa do Sumidouro e toda essa região merecem ser da humanidade. Esse projeto que está sendo abraçado pelo governo de Minas é de fundamental importância para conscientizar não só a população que vive na região, mas todos, da necessidade de preservar o que sobrou na área. É preciso remodelar atitudes ambientais, de turismo e de exploração econômica para preservar essa riqueza da história, da ciência e da natureza”, complementa Cartelle.
In: ESTADO DE MINAS. 13 de junho de 2010, p. 26.

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