As bolsas de mandinga

Tradição fetichista, as bolsas de mandinga ofereciam proteção contra males do corpo e do espírito e se popularizaram na Colônia

Bahia de todos os Santos, ano de 1752. “E tomando pão, e havendo dado graças, partiu-o e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim.” (Lucas 22:19) Após a comunhão, o ex-escravo José Martins soube o momento certo de retirar discretamente da boca a hóstia que acabara de receber. Delatado aos inquisidores, ele confessou que, ao sair da cerimônia, abriu uma pequena bolsa repleta de mandingas que levava consigo e lá dentro pôs o corpo de Cristo. Acreditava que assim seu corpo estaria fechado.


Símbolo do intercâmbio cultural entre a Igreja das irmandades e os calundus, as bolsas de mandinga refletiam a diversidade de idéias e práticas da “medicina mágica”, muito popular na América portuguesa do século XVIII. Em um mundo fortemente marcado pelo medo do Diabo difundido pela Igreja, pela baixa condição social de seus habitantes, pela precariedade da medicina e ainda pela influência das religiões africanas e ameríndias, abundavam as mais diversas explicações e soluções oferecidas para a cura das dores do corpo e também do espírito. 


Identificados popularmente como “mandingueiros” ou “calunduzeiros”, os que difundiam esses conhecimentos foram chamados também de “curandeiros” ou “feiticeiros negros” pelos inquisidores da Igreja Católica, que não os viam com bons olhos. Os calundus designavam um conjunto muito variado de práticas religiosas africanas de diversas procedências, não raro mescladas. As curas mágicas praticadas por eles concorriam ainda com outros métodos e saberes médicos, como os remédios da botica, nome dado às farmácias coloniais, e a aplicação de sanguessugas, entre várias outras terapias.

Ao lado de terços, figas, ágnus-deis, brincos e colares feitos de corais, pencas de balangandãs, escapulários e outros amuletos, as bolsas de mandinga eram uma produção simbólica criativa dos escravos aqui subjugados. Símbolos de saber e poder paralelos aos conhecimentos das medicinas colonial e da Igreja, atingiram diversos segmentos da sociedade, de escravos e forros (escravos libertos) a padres, nobres e sertanejos, provocando fascínio e medo em muitos. A tradição européia de amuletos se misturava aos costumes africanos e aos fetichismos ameríndios.


De origem africana do reino muçulmano de Mali, que floresceu no vale do Níger e no Senegal por volta do século XIII, as bolsas de mandinga eram amuletos produzidos e usados, em busca de proteção e poder, pelo povo malinke ou mandinga.

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Curas mágicas: Proteções para corpo e alma 

A chamada “medicina mágica” pretendia curar o que de estranho havia sido colocado no doente pelo sobrenatural ou extirpar o mal que o fazia sofrer. Entre as crenças comuns no Brasil – muitas delas existentes até hoje – estavam a simpatia e a benzedura: um conjunto de práticas, gestos, rezas ou palavras com os quais se procura obter a cura, a proteção da saúde ou a prevenção de males. Citamos abaixo algumas das técnicas empregadas nesses rituais de cura.

PASSA PRO BICHO: Na simpatia também conhecida como transferência, o mal que aflige o doente é transmitido para um animal por meio do contato. Uma pessoa que sofre, por exemplo, de erisipela deve esfregar um sapo no local da doença. O mal será transmitido para o batráquio e ela ficará curada. Pobres sapos, que antes costumavam ser beijados por princesas... Da mesma maneira, alguém que sofre de asma deve pescar um peixe, cuspir dentro da boca do animal e em seguida soltá-lo. O peixe voltará para o mar terrivelmente insultado e levando consigo os problemas respiratórios do doente. 
 
SURRA: A simpatia que prometia curar a loucura era uma das mais cruéis. Para tanto, o louco deveria ser amarrado em uma rede para que então seu pai lhe aplicasse uma violenta surra com lascas de madeira, vara de marmelo ou correia de couro cru.

PARA TRAZER O AMOR: Algumas rezas também podem ser usadas para fins não-medicinais. Moças solteiras em busca do amor, por exemplo, devem orar para Santo Antônio, em seguida pôr fogo em um pedaço de papel e soltá-lo no chão. Depois disso, deverão repetir várias vezes a frase “Um pedacinho pra Santo Antônio”. Caso o papel se queime inteiro, ela ficará triste, pois não se casará mais. Porém, se um pedaço do papel for preservado pelo fogo, ainda há chances de a moça encalhada encontrar o amor.

SAI PRA LÁ MAU-OLHADO: Ao contrário das simpatias, as benzeduras só podem ser empregadas por um mestre. Para afastar o mau-olhado, o curador deve rezar e depois oferecer um purgante ao paciente. Para completar o efeito, aconselha-se o uso de uma figa ou um dente de jacaré. Outra maneira de afastar as energias negativas é benzer com galhos de arruda ou de guiné. Em seguida, o benzedor deverá lançar, de costas, as folhas na água corrente. Sem olhar para trás, ele deve ordenar que, em nome de Deus, dos santos e da Virgem Maria, o mal siga para as águas do mar sagrado, deixando a vítima da moléstia sã e sossegada.

Adaptado do livro Medicina Rústica de Alceu Maynard Araújo, Companhia

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