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Mostrando postagens de setembro, 2010

Precauções inúteis

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Quem tapa minha boca não perde por esperar o silêncio de agora amanhã é voz rouca de tanto gritar. Quem tapa meus olhos nada esconde de mim Sei seu nome e o seu rosto, o lugar que estou sua noite sem fim. quem tapa meus ouvidos me faz escutar mais Igualei-me às muralhas e o silêncio mais fundo guarda o rumor do mundo. Quem me quer sem memória erra redondamente. Lembro-me de tudo e, cego, surdo e mudo até do esquecimento. E quem me quer defunto confunde verão com inverno. Morto, sou insepulto. Homem, sou sempre vivo. Povo, sou eterno   Lê do Ivo ( Maceió , 18 de fevereiro de 1924 ) é um jornalista , poeta , romancista, contista, cronista e ensaísta brasileiro . Publicou o seu primeiro livro, As Imaginações. Fez jornalismo e tradução . Da sua vasta obra, destacam-se títulos como Ninho de Cobras, A Noite Misteriosa, As Alianças, Ode ao Crepúsculo, A Ética da Aventura ou Confissões de um Poeta.

Colóquio das estátuas

Assim confabulam, os profetas, numa reunião fantástica, batida pelos ares de Minas. Onde mais poderíamos conceber reunião igual, senão em terra mineira, que é o paradoxo mesmo, tão mística que transforma em alfaias e púlpitos e genuflexórios a febre grosseira do diamante, do ouro e das pedras de cor? No seio de uma gente que está ilhada entre cones de hematita, e contudo mantém com o Universo uma larga e filosófica intercomunicação, preocupando-se, como nenhuma outra, com as dores do mundo, no desejo de interpretá-las e leni-las? Um povo que é pastoril e sábio, amante das virtudes simples, da misericórdia, da liberdade – um povo sempre contra os tiranos, e levando o sentimento do bom e do justo a uma espécia de loucura organizada, explosiva e contagiosa, como o revelam suas revoluções liberais? São mineiros esse profetas. Mineiros na patética e concentrada postura em que os armou o mineiro Aleijadinho; mineiro na visão ampla da terra, seus males, guerras, crimes, tristezas e anelos; m

Os profetas de Aleijadinho

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  Contemplemos os profetas de Congonhas, no seu fulgarante "ballet", para usar a expressão de Germain Bazin. Não existe no mundo inteiro maior conjunto artístico do que aquele. Cada Profeta traz na respectiva cartela imprecações e invectivas contra os poderosos e os tiranos. Está na boca de Isaías - "encostaram uma brasa aos meus lábios."   Joel diz solene: "Forjai espadas das relhas de vossos arados." Amós protesta: "Machucam sobre o pó da terra as cabeças dos pobres." Eis como Gilberto Freyre analisa a obra de Antônio Francisco Lisboa, tomando-a como "expressão da rebeldia social e do desejo brasileiro, indígena e mestiço, de independência face aos homens brancos ou europeus exploradoradores da mão-de-obra escrava". E mais: "Nesse mulato doente - distanciado socialmente dos dominadores brancos não só pela cor e pela origem como pela doença que lhe foi comendo o corpo e secando os dedos até só deixar vivo um resto ou retalho de

As armadilhas da pobreza

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Bernardo Kliksberg, assessor do Pnud, fala dos efeitos perversos da desigualdade Por Denise Ribeiro Todos os anos, 18 milhões de seres humanos morrem por causas relacionadas à pobreza. Desse total, 10 milhões são crianças. Em 2008, o mundo comemorou sua segunda maior safra agrícola da história. Mesmo assim, 5 milhões de crianças morreram de fome por falta de acesso à comida. Esses tipos de dados balizam os estudos do economista argentino Bernardo Kliksberg, que assessora o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e outros tantos organismos multilaterais, como o Unicef e a Unesco. Criador de uma nova disciplina, a gerência social, o argentino é um dos pioneiros na disseminação do conceito de ética para o desenvolvimento, o capital social e a responsabilidade social empresarial. Autor de 47 obras, seu livro mais recente, As Pessoas em Primeiro Lugar, foi escrito em parceria com Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia em 1998. Um dos palestrantes da conferência inte

O Chile sombrio de El Rey

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Militante do partido que elegeu Salvador Allende narra três décadas de história do país a partir do golpe de 1973. Salvador Allende Rememorar acontecimentos dolorosos, sobretudo aqueles com os quais tivemos maior envolvimento, é tarefa difícil. Exige um esforço de distanciamento construir um texto em que todos se reconheçam nas sombras do passado. Esta qualidade se destaca na narrativa de Heraldo Muñoz em A Sombra do Ditador – Memórias Políticas do Chile sob Pinochet (Jorge Zahar, 396 págs., R$ 59), uma reconstrução equilibrada da dramática história chilena, abrangendo o período que vai do golpe militar responsável por derrubar Salvador Allende, em 1973, até a eleição de Michelle Bachelet à Presidência, em 2006. Augusto Pinochet Militante do Partido Socialista, que elegeu Allende, Muñoz foi personagem engajado nessa conjuntura traumática. Escapou de ser preso e torturado porque o oficial em seu encalço errou de endereço e a corajosa vizinha, mesmo pressionada pela

Primavera

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A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega. (...) Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor. Tudo i

O legado de Lévi-Strauss

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 Os estudos do pensador do século XX foram fundadmentais para entender que a civilização ocidental não é privilegiada e unica. Lévi-Strauss dedicou mais de duas décadas à analise estrutural dos mitos das populações indígenas. Matéria 1: Claude Lévi-Strauss morre aos 100 anos e deixa um grande legado para a antropologia com a criação do estruturalismo e o fim do pensamento da superioridade da civilização ocidental. Ouça na íntegra a reportagem de Pedro Castro  http://www.ufmg.br/online/radio/arquivos/014235.shtml Matéria 2: Mais do que um antropólogo, Lévi-Strauss era um grande contador de histórias. Ouça na íntegra a reportagem de Bernardo Miranda e Larissa Arantes.  Matéria 3: Obra do antropólogo Claude Lévi-Strauss é essencial para a compreensão dos conflitos indígenas atuais no Brasil. Ouça na íntegra a reportagem de Pedro Castro.

Olhar do século - Henri Cartier-Bresson

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Em reportagens políticas e retratos humanos, Henri Cartier-Bresson deu dimensão artística à fotografia, além de contribuir decisivamente para a valorização do ofício de fotojornalista Henri Cartier-Bresson Feira mundial, Bruxelas, 1958 As imagens de Henri Cartier-Bresson (1908-2004) são tão célebres que muitos acreditam conhecer bem seu trabalho, um dos mais sublimes, expressivos e extensos da arte fotográfica do século 20. Além disso, os amantes da fotografia parecem saber das linhas gerais de sua vida, de sua abertura para outras artes (filmes, pintura e desenho), de seu empenho pela elevação moral e técnica do fotojornalismo, de sua ligação com a Agência Magnum, de seus deslocamentos pelo mundo num trabalho ao mesmo tempo etnográfico, estético e político. No entanto, todas essas certezas são apenas o primeiro degrau para o conhecimento da vida e obra do artista, como mostra o volume Henri Cartier-Bresson: o século moderno, de Peter Galassi, lançado

Museu da Solidariedade

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O Museu da Solidariedade brotou dos esforços do ex-presidente Salvador Allende (1908-1973) que, à época no poder, organizou uma ação internacional para que artistas plásticos sintonizados com a revolução chilena se sensibilizassem com a causa e doassem obras para o museu em formação. Artistas e pessoas ligadas à área movimentaram-se com a intenção de ajudar Allende a montar um museu de arte para seu povo. A manobra internacional funcionou e foi inaugurado o Museu da Solidariedade Salvador Allende, hoje instalado em um antigo palácio da capital Santiago, depois de funcionar num edifício em estilo colonial espanhol, danificado pelo terremoto de 1985 e por este motivo não-recomendável ao abrigo de tão pre

Santa Efigênia

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Na antiga Vila Rica, os escravos costumavam subir uma montanha ao final do dia. Lá se sentavam e conversavam sobre a pátria distante, a saudade da vida livre, o medo de morrer escravos numa terra estranha e distante. Juntos choravam sua desgraça. Nesse local havia uma cruz alta de jacarandá que deu o nome ao bairro de Alto da Cruz. Um dia, quando estavam sentados ao pé da cruz como sempre faziam, os negros viram surgir, à sua frente, uma jovem negra, muito bonita que os consolou com doces palavras. Disse que era uma virgem cristã de nome Efigênia. A notícia daquela aparição se espalhou entre os escravos e cada vez mais pessoas se reuniam naquele morro na esperança de ver a jovem misteriosa. Ela vinha e conversava com eles, ensinava o amor, a tolerância e a paciência. Um dia, como sempre ela apareceu e pediu aos escravos que fosse construída naquele local uma igreja para que eles pudessem ter um templo seu para suas orações.  A igreja deveria ter cinco altares simb

ESCOLHA: cursos de graduação da UFOP

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Em busca da construção de uma história singular, alunos e professores da Escola Estadual Professor Antônio Gonçalves Lanna de Ponte Nova participaram da 5ª Mostra de Profissões organizado pela UFOP no dia 18 de setembro de 2010. Depois de visitas monitoradas, apresentações culturais e estandes, caminharam atentamente pelas ruas, ladeiras, praças e museus, presenciando o diálogo dos tempos: do Barroco Mineiro e dos ideais de liberdade ao hibridismo cultural do século XXI. 5ª Mostra de Profissões - fotos

Bons dias!

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Crônica publicada no jornal Gazeta de Notícias , em 19 de maio de 1888.  Eu pertenço a uma família de profetas après coup , post factum , depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário fôr, que tôda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.  Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.  No golpe do meio ( coup du milieu , mas eu prefiro fa

As estrelas

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"As pessoas têm estrelas que não são as mesmas.  Para uns, que viajam, as estrelas são guias. Para outros, elas não passam de pequenas luzes.  Para outros, os sábios, são problemas.  Para o meu negociante, eram ouro.  Mas todas essas estrelas se calam.  Tu porém, terás estrelas como ninguém...  Quero dizer: quando olhares o céu de noite, (porque habitarei uma delas e estarei rindo), então será como se todas as estrelas te rissem! E tu terás estrelas que sabem sorrir! Assim, tu te sentirás contente por me teres conhecido.  Tu serás sempre meu amigo (basta olhar para o céu e estarei lá).  Terás vontade de rir comigo. E abrirá, às vezes, a janela à toa, por gosto... e teus amigos ficarão espantados de ouvir-te rir olhando o céu.  Sim, as estrelas, elas sempre me fazem rir!"  O Pequeno Príncipe - Antoine de Saint-Exupéry

Minha condição humana - Einstein

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Minha condição humana me fascina. Conheço o limite de minha existência e ignoro por que estou nesta terra, mas às vezes o pressinto. Pela experiência cotidiana concreta e intuitiva, eu me descubro vivo para alguns homens, porque o sorriso e a felicidade deles me condicionam inteiramente, mas ainda para outros que por acaso, descobri terem emoções semelhantes às minhas.E cada dia, milhares de vezes, sinto minha vida_ corpo e alma_ integralmente tributária do trabalho dos vivos e dos mortos. Gostaria de dar tanto quanto recebo e não paro de receber. Mas depois experimento o sentimento satisfeito de minha solidão e quase demonstro má consciência ao exigir ainda alguma coisa de outrem. Vejo os homens se diferenciarem pelas classes sociais e sei que nada as justifica a não ser pela violência. Sonho ser acessível e desejável para todos uma vida simples e natural, de corpo e de espírito.Recuso-me a crer na liberdade e neste conceito filosófico. Eu não sou livre, e sim às vezes c

A língua de avatar

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Idioma criado por linguista para filme de James Cameron recorre a sonoridade atraente e junção de línguas exóticas aos ouvidos ocidentais Edgard Murano A guerreira Neytiri em cena do filme Avatar:mistura de línguas exóticas empresta um ar "alienígena" a idioma ficcional Nem alienígenas azuis, nem efeitos especiais em três dimensões. Em Avatar, primeiro filme do diretor James Cameron após Titanic, o artifício mais engenhoso fica por conta do idioma concebido pelo linguista Paul Frommer para o planeta Pandora, palco dos conflitos entre humanos e os seres da raça Na'vi. O filme chegou ao Oscar como o novo recordista mundial de bilheteria, com mais de US$ 1,9 bilhão arrecadados.  Em 2005, Cameron entregou a Frommer, então chefe do departamento de linguística da University of Southern California, um roteiro que continha, entre outras coisas, 30 termos do que viria ser a língua fictícia - em s

As lições dos mestres

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Só há um jeito de começar a escrever: é começar agora. O conselho, mesmo que ninguém o peça embora o devesse, abre um livro excelente sobre a atividade escrita, Oficina de Escritores (Martins Fontes, 2008), de Stephen Koch. Manuais de escrita prêt-à-porter lembram aqueles guias de autoajuda existencial ou corporativa sempre muito reverenciados, mas inúteis - o de Koch não o é. Ele sabe e professa que a atividade de escrita não é um talento inato, mas tampouco é coisa que se aprenda sozinho. Cada escritor tem ao menos uma grande lição digna de nota. Em língua portuguesa, podemos aprender muito sobre como elaborar bons textos se aproveitarmos a lição que a leitura dos mestres oferece. A revista Língua faz a seguir uma pequena seleção das qualidades que alguns desses textos nos legaram, com certas qualidades de estilo em língua portuguesa. Os autores selecionados não foram, evidentemente, os únicos redatores a fazê-lo. Muitos têm igualmente o que nos ensinar, e a lista que

Todas as vidas

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Em Cora Coralina vivem a cabocla velha, a lavadeira, a cozinheira, a proletária, a roceira e a mulher da vida. Em sua vida, a vida mera das obscuras. Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado, acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo. Benze quebranto. Bota feitiço... Ogum. Orixá. Macumba, terreiro. Ogã, pai-de-santo... Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho, Seu cheiro gostoso d’água e sabão. Rodilha de pano. Trouxa de roupa, pedra de anil. Sua coroa verde de são-caetano. Vive dentro de mim a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito. Panela de barro. Taipa de lenha. Cozinha antiga toda pretinha. Bem cacheada de picumã. Pedra pontuda. Cumbuco de coco. Pisando alho-sal. Vive dentro de mim a mulher do povo. Bem proletária. Bem linguaruda, desabusada, sem preconceitos, de casca-grossa, de chinelinha, e filharada. Vive dentro de mim a mulher roceira. – Enxerto da terra, meio casmurra. Tra

Tabacaria

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Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje p

O intolerável e a tolerância

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Ben Kingsley no papel de Gandhi, no filme de Richard Attenborough: quando gestos poéticos fazem a diferença Não há debate mais importante hoje, seja no âmbito da sociedade seja na relação entre indivíduos, que a questão da diferença. A sociedade pós-moderna, gostemos ou não do rótulo, é o campo das diferenças em contato permanente. Quando se fala em pós-modernidade, há duas acepções que nos vêm à mente: a primeira parece ser positiva, como se vivêssemos no terreno das promessas da modernidade, cumpridas em seus propósitos generosos. A outra definição, mais ligada a certa estética da existência, toma a pós-modernidade como território compósito, de fricções, contágios, mesclas. A igualdade é moderna; a liberdade é pós-moderna. Nesse cenário, vivemos cada vez mais provocados por estímulos morais, psicológicos, ideológicos, políticos e estéticos a nos mostrar que não há mais uma bússola universal. Tudo é possível. A esse universo pleno de possibilida

Clarice por Clarice

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Pedro Karp Vasquez Ao mesmo tempo que ousava desvelar as profundezas de sua alma em seus escritos, Clarice Lispector costumava evitar declarações excessivamente íntimas nas entrevistas que concedia, tendo afirmado mais de uma vez que jamais escreveria uma autobiografia. Contudo, nas crônicas que publicou no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973, deixou escapar de tempos em tempos confissões que, devidamente pinçadas, permitem compor um auto-retrato bastante acurado, ainda que parcial. Isto porque Clarice por inteiro só os verdadeiramente íntimos conheceram e, ainda assim, com detalhes ciosamente protegidos por zonas de sombra. A verdade é que a escritora, que reconhecia com espanto ser um mistério para si mesma, continuará sendo um mistério para seus admiradores, ainda que os textos confessionais aqui coligidos possibilitem reveladores vislumbres de sua densa personalidade.   A descoberta do amor “[...] Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um

Especial Gilberto Freyre 110 anos - Quadrinhos - Clássico adaptado

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Gilberto Freyre (1900-1987) era um estudioso que desenhava bem; Ivan Wasth Rodrigues (1927-2007) era um desenhista que também se dedicou ao estudo da História. Historicamente, o trabalho de Ivan Wasth Rodrigues é impecável. Só quem se aventurou a recriar cenas históricas pode avaliar a quantidade de informação e pesquisa que cada quadro criado por ele concentra. Mas neste caso em especial, o resultado aparenta ser um pouco frio. Em parte pelo desenho clássico, rigorosamente acadêmico, de Ivan, e em parte, creio eu, pelo desejo de mostrar ao leitor os costumes e as coisas do passado com a máxima clareza. É um livro ótimo para se pesquisar, para se adquirir informação, mas não tem tanta plasticidade quanto a prosa de Gilberto Freyre. O clássico Casa-Grande & Senzala (1933) é uma obra saborosa, intuitiva, impressionista, feita de representações muito vivas e palpáveis do cotidiano colonial: “Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tornou-se um

Mais ao Sul

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"A estrada em frente vai seguindo Deixando a porta onde começa Agora longe já vai indo Devo seguir, nada me impeça; Por seus percalços vão meus pés, Até a junção com a grande estrada, De muitas sendas através  Que vem depois? Não sei mais nada." J.R.R. Tolkien, O Senhor dos Anéis. 

Segredos

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- Mas como fazem essas crianças sem livros de histórias? - perguntou Naftali. E Reb Zebulun respondeu: -Elas têm que se conformar. Livros de histórias não são como pão. Pode-se viver sem eles. -Eu não poderia viver sem eles - disse Naftali. Issac B. Singer, Naftali, o contador de histórias, e seu cavalo Sus.

Escutatória

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Rubem Alves Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma“. Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. (...) Para se ver e preciso que a cabeça esteja vazia. Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.“ Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é mu

A condição humana

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Deus criou o homem para introduzir no mundo a capacidade de iniciar. Ser humano e ser livre são, então, uma única e mesma coisa. E homens e mulheres são livres apenas quando agem, nem antes, nem depois; pois 'ser livre e agir são o mesmo'. (Entre o passado e o futuro)                                                               Hanna Arendt Alemã, Hannah Arendt (1906-1975), nasceu numa abastada e antiga família judia. Sempre resistiu ao título de Filósofa, pois considerava-se, “apenas” uma pensadora. Afirmava que o pensamento deve estar a serviço da vida e não numa encapsulada Filosofia. Teve o privilégio de ser aluna e amiga pessoal de Heidegger, Husserl e de Jaspers, expoentes da corrente filosófica fenomenológico-existencial. Diferente da ontologia metafísica antiga, cuja origem remonta a Platão, a fenomenologia existencial parte das coisas que aparecem no mundo. Tomemos o seguinte exemplo: a experiência sensível (de onde também parte a razão científica) nos p

Pertencer a à nação brasileira: o que significa?

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Monarquia ou república? Essa foi uma das questões em foco no debate político,  anterior à própria independência. Na Monarquia, cristalizava-se a esperança de ver apaziguadas as divergências entre os grupos políticos provinciais e locais e entre os senhores do país e o povo-massa: “Acusam-me alguns de que plantei a Monarquia. Sim, porque vi que não podia ser de outro modo então; porque observava que os costumes e o caráter do povo eram eminentemente aristocráticos; porque era preciso interessar às antigas famílias e os homens ricos que detestavam ou temiam os demagogos... Sem a monarquia não haveria um centro de força e união, e sem esta não se poderia resistir às cortes de Portugal e adquirir a Independência Nacional” (José Bonifácio, apud Carvalho Souza,1999:268).                 "Independência ou Morte", quadro a óleo de Pedro Américo, pintado em 1888 e conservado no Museu                  Paulista (Museu do Ipiranga), na capital paulista. Um grito que não foi.