Muito além do mito

Entrevista/Luiz Bernardo Pericás



Historiador retoma os estudos sobre o cangaço e propõe nova interpretação histórica do fenômeno



O fenômeno do cangaço, que teve início ainda no século 19, viveu seu apogeu nos anos 1920 e terminou no fim dos anos 1930, com a morte de Lampião e boa parte do seu grupo, no estado de Sergipe, já rendeu dezenas de livros, incontáveis teses acadêmicas, além de vários filmes. Histórias sobre estes homens e mulheres, que com seus rifles “à bandoleira”, indumentárias especiais e muita disposição para a briga vagavam de um estado a outro do Nordeste, continuam a ser passadas de pai para filho, sobretudo no palco onde se deram os acontecimentos. “O cangaço está incrustado no imaginário social brasileiro”, diz o historiador Luiz Bernardo Pericás, que depois de anos de pesquisas acaba de publicar, pela Boitempo Editorial, o livro Os cangaceiros – ensaio de interpretação histórica, com o qual pretende lançar novas luzes sobre o tema, que ainda parece longe de estar esgotado. Formando em história pela Washington University e doutor em história econômica pela USP, Luiz Pericás afirma ainda que em nenhum momento no seu livro quis ser polêmico. Em entrevista a Carlos Herculano Lopes, ele garante que seu objetivo foi enfatizar alguns aspectos do cangaço que por vezes foram negligenciados ou pouco explorados por outros autores.





Muitos livros já foram escritos sobre o cangaço e os cangaceiros. Por que você também resolveu explorar este tema e qual foi o principal enfoque que procurou dar ao seu trabalho?

O cangaço sempre me fascinou. Está incrustado no imaginário social brasileiro. Alguns anos atrás decidi ler com mais cuidado o que havia sido escrito sobre o tema e percebi que havia grandes possibilidades de ir além, de tentar avançar nos estudos sobre o cangaceirismo. E, à medida que ia me embrenhando no assunto, encontrava uma grande diversidade de teorias e interpretações diferentes, muitas conflitantes, contraditórias, assim como trabalhos que estavam longe de representar verdadeiros “estudos”, trabalhos de maior fôlego e profundidade. Boa parte das obras era de caráter biográficos em geral, textos narrativos sobre a vida de Lampião. Mas estudos mais amplos, com um escopo temporal mais dilatado, incorporando cangaceiros de outras épocas e que discutissem questões de fundo sobre o assunto, eram poucos e nem sempre bons. Várias obras de teor mais “analítico” também me pareciam datadas, excessivamente influenciadas por traços ideológicos da época em que foram escritas e relativamente pobres em termos de pesquisas.



E o que você concluiu dessa análise inicial?

A impressão que tive é que certos autores já tinham a resposta antes de escreverem seus livros e tentavam moldar os fatos às usas propostas, ou seja, colocavam os fatos dentro de uma “camisa de força” teórica, para justificar seus posicionamentos políticos. Por isso, achei que valia a pena tentar dar uma nova contribuição nesta área. Minha intenção não foi, em nenhum momento, ser polêmico, mas apenas lançar luz a novas variáveis e enfatizar alguns aspectos do cangaço que foram negligenciados por outros autores. Ou seja, eu quis, na prática, abrir a possibilidade para novos debates e discussões sobre o assunto.



Então você vê como tendenciosos, tanto de um lado como outro, alguns livros até agora publicados sobre o cangaço? Dos trabalhos que conhece, quais citaria como fontes de referência?

Há dezenas de livros sobre o cangaço. Desde Gustavo Barroso e Xavier de Oliveira, passando por Ranulfo Prata, Érico de Almeida, Optato Gueiros, Rodrigues de Carvalho e Abelardo Montenegro até chegar a autores como Maria Isaura Pereira de Queiroz e Frederico Bezerra Maciel, entre muitos outros, estudiosos do banditismo rural nordestino tentaram entender o cangaço a partir de diferentes vertentes político-ideológicas e variadas perspectivas historiográficas. Muitas obras são, de fato, de qualidade duvidosa, algumas delas com linguagem bastante preconceituosa e com escasso caráter científico. É possível encontrar livros bastante tendenciosos, por certo, alguns escritos na época em que o cangaço grassava, carregando nas tintas os atos dos bandoleiros e usando muitas vezes os argumentos das forças da legalidade para apoiar uma dura repressão àqueles bandidos. Também houve, por outro lado, autores que tentaram transformar os cangaceiros em “heróis” populares, quase Robin Hoods sertanejos, em grande medida, baseados mais em lendas do que em fatos concretos, claramente distorcendo a realidade. Mas existem algumas obras sérias, profundas, sofisticadas sobre o assunto. Frederico Pernambucano de Mello escreveu um dos mais sérios livros sobre o tema, Guerreiros do sol, hoje já considerado um clássico sobre o cangaceirismo.



O tema também interessou pesquisadores estrangeiros e jornalistas. Quem você destacaria?

Os brasilianistas Billy Jaynes Chandler e Linda Lewin também deram importantes contribuições nesta área. Gregg Narber, ainda que tenha preparado um livro de síntese, essencialmente resumindo diferentes posições sobre o messianismo, milenarismo e cangaço, também é um autor respeitável, que realizou um trabalho competente em Entre a cruz e a espada: violência e mistiscismo no Brasil rural. No campo acadêmico, temos um trabalho publicado alguns anos atrás, do antropólogo Jorge Mattar Villela, muito útil para pesquisadores. Também merecem menção aqui os dois volumes dedicados ao oficial Theophanes Ferraz Torres, preparados por Geraldo Ferraz de Sá Torres, e a biografia de Antônio Silvino, escrita por Sérgio Augusto de Souza Dantas. E, finalmente, no meio jornalístico, Melchíades Rocha, que realizou um trabalho de campo bem interessante, uma grande reportagem, logo após o assassinato de Lampião, que foi publicada em forma de livro com o título de Bandoleiros das catingas, e, em anos recentes, uma “reportagem-histórica” muito interessante do jornalista Moacir Assunção, Os homens que mataram o facínora, que também vale a pena ser mencionada.



Lampião foi o mais célebre dos cangaceiros. Você acha que a fama toda que ele alcançou foi devido à mídia, que ele soube explorar muito bem, ou realmente mereceu o título de Rei do Cangaço?

Lampião, sem dúvida, foi o mais importante de todos os cangaceiros. Nem mesmo Antônio Silvino (que antes também ostentava os títulos de “rei dos cangaceiros” e “governador do sertão”, chegou perto em importância histórica). O cangaço esteve no auge nos anos 1920, quando Lampião reinava inconteste. A mídia nas décadas de 1920 e 1930 certamente estava mais desenvolvida do que em épocas anteriores, o que ajudou a propagar a imagem de Virgulino pelo país. Fotos de Lampião eram difundidas em jornais e revistas brasileiros, e imagens do seu bando foram registradas por Benjamin Abraão. Lampião atuou por muitos anos, liderou um número grande de asseclas, cruzou as divisas de vários estados nordestinos e usava técnicas de violência e tortura (assim como outros membros do seu bando)realmente hediondas. Alguns de seus “feitos” e combates tiveram grande envergadura, se os colocarmos dentro dos padrões do sertão de sua época. Também no campo “imagético”, da “estética”, Lampião e seu grupo se mostravam ousados.



Há uma imagem construída em torno do personagem para explicar uma época?

Toda a imagem e a construção social do “ator” cangaceiro ao longo do século 20 parte do período lampiônico. É só ver a grande quantidade de filmes sobre o cangaço. A imagem que se tem do “ator social” cangaceiro está associada a Lampião e seus sequazes. A indumentária e as decorações dos vestuários dos bandoleiros daquele período, portanto, também tiveram sua parte na imagem do cangaço como ficou popularmente conhecido. E finalmente a entrada das mulheres nos bandos, na década de 1930, também ajudou na mitificação do fenômeno. Os bandos eram errantes, nômades, tinham indumentária própria, andavam juntos, levavam consigo mulheres, crianças e cães (seus animais de estimação), dançavam, bebiam e criavam grande celeuma ao entrar nos vilarejos. Tudo isso junto, assim como sua atitude desafiadora contra certas autoridades e suas qualidades políticas e militares (tanto nas negociações com coronéis e políticos locais, como em suas habilidades logísticas e em combates ), colaborou para tornar Lampião, de fato, o Rei dos Cangaceiros.



Padre Cícero, do qual Lampião era devoto, acabou conseguindo para ele o título de capitão, para combater a Coluna Prestes. Mas, pelo visto, isto nunca aconteceu. Como você analisa esta passagem na vida do cangaceiro e por que ele se recusou a entrar em confronto direto com a coluna?

Na verdade, a patente de capitão nunca teve, de fato, validade jurídica. Foi outorgada pelo inspetor agrícola do Ministério da Agricultura Pedro de Albuquerque Uchoa, que foi praticamente obrigado a conceder a patente apenas por ser um funcionário federal. Mas aquele indivíduo não tinha nenhuma autoridade ou credencial para fazer aquilo. Foi praticamente uma imposição do padre Cícero naquela ocasião. O episódio da Coluna Prestes, de qualquer forma, é bastante emblemático. Lampião, neste caso, se aliou às forças mais conservadoras (a Igreja, o coronelismo e o governo Artur Bernardes) para combater justamente Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, que representava a luta contra o sistema dominante e por mudanças sociais. O fato é que Lampião se deu conta de que continuaria a ser considerado um bandido pelas polícias dos estados que o procuravam e que o documento que carregava garantindo que era oficial de um Batalhão Patriótico não seria respeitado. Ou seja, para todos os efeitos, as polícias dos estados continuariam a vê-lo como um simples bandido, que deveria ser caçado, capturado e, se possível, preso ou assassinado. Ao perceber que sua nova suposta “patente” não convenceria ninguém e de que continuaria sendo perseguido, resolveu continuar em sua vida de crimes.


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