Atualidade de 1930

Temas que estiveram na proa das discussões da campanha eleitoral deste ano refletem preocupações históricas presentes desde a chegada de Vargas ao poder
Lucilia de Almeida Neves Delgado
 
Arquivo EM - 31/01/1951
Getúlio Vargas assume como presidente eleito, em 1951, trazendo a herança e as promessas do período de 1930 a 1945

Ao reunir, nesses últimos dias, livros, artigos e alguma documentação histórica para aulas sobre 1930, a serem ministradas na Universidade de Brasília, desloquei por algum tempo meu pensamento das aulas que deveria preparar e voltei-me para as eleições presidenciais deste ano. A motivação da análise sobre o tempo presente calou mais alto e, imediatamente, pus-me a pensar sobre as diferenças e semelhanças entre os temas e projetos que aqueceram as eleições de 1930 e as atuais. Minhas reflexões levaram-me a identificar inúmeros assuntos que foram apresentados nos programas eleitorais e debates de candidatos à Presidência da República nos dias de hoje com metas governamentais e estratégias políticas traçadas por Getúlio Vargas, em um primeiro ensaio como candidato e, na sequência, como presidente empossado. Consideradas as diferenças substantivas entre as duas épocas, chamou-me atenção a recorrência no tempo presente de algumas questões que mobilizaram os articuladores da Aliança Liberal, que sustentou a ascensão de Vargas ao mandato presidencial. Ascensão que se consolidou em um longo período governamental que começou há 70 anos, em outubro de 1930, e durou 15 anos (1930 a 1945).

O estudo da história é fascinante, pois possibilita instigantes viagens no tempo e no espaço. O retorno, mesmo que imaginado, aos idos do fim da década de 1920 e ao início da de 1930 apresenta um Brasil efervescente, prenhe de vontade de transformação. Era um país que buscava, mesmo que de forma tardia, transformar-se em uma nação da modernidade. Almejava-se a adoção de um modelo de processo civilizador inspirado nos valores da racionalidade científica, do positivismo e do iluminismo, em voga nos países desenvolvidos, em especial na Europa. A realização da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, é um belo paradigma desse empolgante objetivo de construção da modernidade, que contagiou políticos, artistas e literatos. Os intelectuais e artistas que se reuniram na preparação e realização daquele evento propunham a atualização das expressões artísticas produzidas no Brasil às novas demandas culturais, científicas e modernizadoras do início do século 20.

Atualização cultural do Brasil, renovação estética, ruptura com um passado conservador nas artes e no cotidiano da vida em sociedade, adoção de ideias inovadoras, valorização da brasilidade e adoção do experimentalismo são ideais nucleares do modernismo brasileiro, na alvorada do século 20. A Semana de Arte Moderna, sem dúvida, expressou, no campo das artes e da literatura, o desejo de modernização de muitos setores da sociedade brasileira. Portanto, as artes, com seu especial recurso de expressão de sentimentos, incorporaram a representação de um Brasil que se queria moderno, eficiente e civilizado.

Mas a tarefa de modernização não era fácil. Problemas estruturais incompatíveis com um modelo de civilização moderna e próspera marcavam como tatuagem o cotidiano da vida nacional. Entre eles destacavam-se: analfabetismo; precárias condições de vida nas áreas rurais e nas periferias e cortiços das grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro; mandonismos locais; domínio dos grandes coronéis no interior e desdobramentos desse domínio na instância federal; economia essencialmente agrícola e monocultora, voltada para a exportação; precárias, ou inexistentes, políticas de saúde pública; total desproteção ao trabalho e ao trabalhador; distorções políticas como limitação ao direito de voto e controle das eleições pelas oligarquias; cultura política patrimonialista, industrialização incipiente e litígios intrarregionais.

Naqueles anos o Brasil também foi atingido pela crise econômica que assolou o mundo. Essa profunda dificuldade conjuntural deu maior visibilidade aos problemas crônicos de um país de então recentíssimo passado escravocrata. Esse era o pano de fundo de um cenário político no qual às disputas regionais somaram-se profundas divergências referentes a projetos alternativos para o país. Ou seja, os políticos e segmentos da população brasileira postavam-se na defesa de dois projetos opostos. Um traduzia os anseios dos defensores de um modelo de Brasil essencialmente liberal, agrícola e exportador. A eles se contrapunha um projeto de um Brasil menos liberal e mais urbanizado, industrializado e moderno. Mas essa dualidade entre o antigo e o moderno, que, à primeira vista, pode parecer explicativa da realidade histórica daqueles anos, não traduz a complexidade de conflitos, objetivos e posições políticas presentes no cenário brasileiro na virada dos anos 1920 para os anos 1930. É preciso lembrar que esse cenário era também caracterizado por demandas sociais dos trabalhadores, conflitos entre oligarquias, insatisfação de setores das Forças Armadas e influência internacional na composição da população brasileira, decorrente da chegada de expressivo contingente de imigrantes ao país.

Pacto rompido Nessa conjuntura histórica marcada por especial complexidade social, política e econômica, as insatisfações eram muitas. Entre elas, destacaram-se a de políticos de diferentes extrações partidárias e regionais que havia alguns anos já vinham demonstrando sua discordância em relação à hegemonia política de São Paulo e de seu estado aliado, Minas Gerais. No esteio da crise mundial de 1929 e da depressão que a seguiu, formou-se, então, uma frente política que se contrapôs à hegemonia paulista. Até Minas Gerais, aliado tradicional de São Paulo no revezamento do poder federal, ao se sentir traído pelos paulistas nas eleições presidenciais de 1930, rompeu o pacto político e se agregou, com força de liderança, à grande frente política que acabou por sustentar a Revolução de 1930. Dessa aliança participaram oligarquias, como as do Rio Grande do Sul e da Paraíba; segmentos de classe média, como os tenentes, que eram muito críticos das distorções presentes nos processos eleitorais no Brasil, e intelectuais que se animavam pelo ideal de construção de um Brasil mais nacionalista e atualizado com as exigências da modernidade.

Euler Junior/EM/D.A Press - 1/5/09
Missa do Trabalhador, em Contagem, se torna ato de defesa dos direitos trabalhistas


Em Minas Gerais, sob a liderança de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, formou-se a Aliança Liberal, principal organização de oposição ao mando político da oligarquia paulista. A ela se agregaram outros setores de oposição, inclusive alguns paulistas que anteriormente fundaram o Partido Democrático (PD) para se contrapor ao Partido Republicano Paulista (PRP). Antônio Carlos expressou em uma única frase – “façamos a revolução antes que o povo a faça” – quais eram os limites dessa aliança política. Uma aliança que se dizia progressista, mas que incluía entre seus membros pessoas e grupos que tinham profundas dificuldades em aceitar a participação da população mais carente do Brasil nas lides da política.

Assim, depois de um pleito eleitoral conturbado e acusado de fraude no qual foi eleito o paulista Júlio Prestes, essas forças políticas de oposição, tendo à frente Getúlio Dornelles Vargas, conseguiram impedir a posse do presidente eleito. Em 3 de outubro de 1930, como desdobramento dessa iniciativa, assumiram o poder federal. Instauraram, naquela ocasião, um governo provisório, que passou por algumas fases e deixou de ser provisório, pois perdurou até 1945.

Todavia, a ampla frente que alçou Getúlio Vargas ao poder foi se dispersando na dinâmica dos acontecimentos e da adoção de medidas de grande impacto social, econômico e político pelo governo federal. Eram ações que confirmavam não só as escolhas governamentais do novo presidente, mas, principalmente, sua orientação política centralizadora, trabalhista e nacionalista. Inclusive, alguns de seus aliados das primeiras horas, cujo perfil era liberal, tornaram-se, ao longo da década de 1930, seus adversários e, em 1945, lideraram forte oposição ao mesmo presidente para cuja chegada ao poder central haviam contribuído 15 anos antes.

Ao analisar as realizações e iniciativas do primeiro governo Vargas, que se estendeu de 1930 a 1945, é fácil entender por que muitos historiadores consideram o ano de 1930 como um dos mais importantes do século 20 na história brasileira.

Vargas e seus aliados pareciam ter olhos e propostas para tudo, incluindo educação; saúde; reforma administrativa do Estado; políticas de preservação do patrimônio nacional; legislação trabalhista; programas de incentivo à industrialização; políticas de proteção e valorização do café; fortalecimento das Forças Armadas; legislação trabalhista; estratégia de aproximação com a Igreja Católica e seus fiéis, construção de monumentos de valorização da nacionalidade, como o do Cristo Redentor no Rio de Janeiro; instalação de uma empresa estatal de vulto no Brasil, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), programas de saúde pública e arrojada política de incentivo à alfabetização, à educação básica e à prática de esportes. Tudo isso agregado a um autoritarismo crescente, que, em 1937, alcançou seu ápice com a instalação do Estado Novo.

De 1937 a 1945 Vargas governou com rédea curta. Seu discurso de unidade nacional levou-o a condenar toda e qualquer disputa social, política e ideológica. Como marca dessa fase destacaram-se: fechamento de todas as casas legislativas do Brasil, cancelamento do registro de partidos políticos, nomeação de interventores para governar os estados da federação, ampla censura à imprensa, prisão de adversários do regime, em especial, militantes de esquerda, como os comunistas, e forte propaganda governamental, coordenada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).

Ontem e hoje Essa não é mais do que uma sintética retrospectiva histórica. Apresenta, contudo, variáveis que estimulam, como assinalado no início deste artigo, a comparação de assuntos que empolgaram os brasileiros que viveram naqueles anos com muitos dos temas e questões que animaram o pleito eleitoral deste ano de 2010 no Brasil.

O eixo estruturador do projeto inaugurado em 1930 era essencialmente estatizante. Ao Estado cabia planejar a economia, orientar e coordenar políticas educacionais e de saúde pública, adotar medidas de preservação patrimonial e de interiorização do país. Além disso, deveria adotar postura de Estado empresário, que reservaria a si a direção econômica, o gerenciamento e os investimentos em áreas consideradas estratégicas para a economia nacional. Entre elas, destacavam-se as da energia e siderurgia. O projeto de Vargas para a nação brasileira não admitia que qualquer desses setores pudesse ser controlado por capital privado. Ora, desde o governo Fernando Henrique Cardoso, antecedido por algumas iniciativas do governo Collor, o tema da privatização de empresas públicas mobiliza segmentos que divergem, com contundência, sobre a necessidade ou não de privatizar empresas públicas, em especial aquelas que atuam em segmentos estratégicos para a nação brasileira. Essa discussão, por incrível que pareça, mesmo passados 80 anos da ascensão de Vargas ao poder, continua atual e relevante. Ou seja, no Brasil de ontem encontramos aspectos da atualidade do Brasil de hoje.

Outra questão, muito polêmica, refere-se à relação Estado/religião. Vargas compreendeu que seu projeto político não encontraria legitimidade sem o seguro apoio da Igreja Católica, que era quase que exclusiva, no Brasil da década de 1930. Portanto, aproximou-se do catolicismo oficial e fez dele seu parceiro na difusão de projetos como os de valorização da família, da fé, da paz social e do trabalho em benefício da nação. Em outras palavras, o Estado laico buscou acertar seus passos com a religiosidade do povo brasileiro e com as orientações das principais lideranças clericais do catolicismo. Para espanto de alguns e alegria de outros, o tema da legalização do aborto, que é uma questão laica, mas que traz em si expressiva carga de valor religioso, ganhou dimensão espantosa na atual campanha política. Esse assunto mobilizou tanto a Igreja Católica como as protestantes históricas e as evangélicas que se multiplicaram nos últimos 20 anos. Ao ser trazido à tona, acabou por ocupar parte substantiva da agenda dos candidatos e de sua plataforma eleitoral. Ou seja, a prática de imiscuir assuntos laicos com religiosos perdura e demonstra que a estratégia do ontem vale para o hoje.

Para encerrar esta reflexão, que poderia se estender a um elenco expressivo de assuntos, a questão do trabalho, do trabalhador e das leis que regulam relações e condições de trabalho é outro tema que, além de polêmico, renovou-se em atualidade e relevância na atual conjuntura eleitoral. Quando Getúlio Vargas assumiu, em 1930, o trabalho no Brasil era um grave problema social que, segundo dizeres de Washington Luís, deveria ser tratado como uma questão de polícia. Mas essa não era a visão do presidente empossado. Para ele, regulamentar as relações de trabalho era uma ação estratégica para o desenvolvimento nacional e para alcançar paz social, pela neutralização das reivindicações dos trabalhadores. Essa orientação foi implementada ano a ano, por meio da edição de novas leis referentes ao mundo do trabalho. Sua consagração final foi alcançada quando da publicação da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, em 1943.

No tempo presente, o assunto reforma trabalhista apareceu com forte carga emocional na campanha política. A defesa da CLT, mesmo que seletiva, e a crítica contundente a essa legislação orientaram posições políticas divergentes e provocaram calorosos debates. Tal fato demonstra que a marcha da história nem sempre é transformadora. Demonstra também que em países como o Brasil, marcados por tradição ibérica excludente, muitas vezes o discurso conservador é transmudado em progressista. Assim acontece nas discussões sobre a regulamentação do trabalho. Ou seja, muitos dos defensores da flexibilização trabalhista afirmam que restringir direitos é medida necessária à construção da modernidade e do progresso. Talvez, iniciativas desse tipo possam ser consideradas modernas se orientadas por uma visão de progresso exclusivamente afeita ao crescimento econômico. Mas uma modernização que tenha como um de seus pressupostos a lesão de direitos históricos jamais deixará de ser conservadora e excludente e, portanto, incompatível com um processo civilizador inclusivo e com boas práticas republicanas.


Lucilia de Almeida Neves Delgado é historiadora, professora da UnB e da UFMG e professora colaboradora da PUC Minas.
 
In: ESTADO DE MINAS. PENSARBRASIL. 13 de novembro de 2010. p. 20-23.

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