Revolução Tecnológica

Para Broers: só o conhecimento da tecnologia
vence os mitos e a ingenuidade
Nossa melhor aposta

A tecnologia é moralmente neutra - cura um câncer e explode a bomba -, mas
é a via mais segura para resolver muitos dos problemas atuais

                                       Fotos Album/Latinstock e Divulgação
VELHA ANGÚSTIA
Frankenstein e Avatar, enredos que mostram a mesma ansiedade em relação à tecnologia
Frankenstein e Avatar, enredos que mostram a mesma ansiedade em relação à tecnologia
Filha de uma feminista e de um filósofo radicais, e já casada com um poeta revolucionário, Mary Shelley tinha apenas 19 anos quando mandou às favas a ambição dos pais e do marido de criar o "homem novo" e criou um "novo monstro": Frankenstein. Escrito sob o impacto da Revolução Industrial e publicado em 1818, seu livro mais famoso é interpretado como marco zero da demonização da tecnologia. Em Frankenstein, ou o Moderno Prometeu, a autora compara a tecnologia a uma força autônoma, que pode resultar em aberração e monstruosidade e acabar voltando-se contra seu criador. Passados dois séculos, só cresceu a estridência da denúncia contra a força maligna das invenções de laboratório. Hoje, a tecnologia é o saco de pancada predileto da geração mais tecnológica da história da humanidade. Acusa-se a tecnologia de poluir as cidades, devastar rios e florestas, aquecer o planeta, causar acidentes, destruir empregos, provocar dilemas morais, afastar as pessoas. Diante disso, é notável que o vento ande soprando na direção contrária - e a tecnologia, finalmente, comece a ser vista não mais como parte do problema, mas como a solução.

Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos e célebre ecoapóstolo do fim do mundo, sustenta exatamente esse ponto de vista em Nossa Escolha, seu último livro sobre o aquecimento global. Em Avatar, o diretor James Cameron denuncia a devastação ecológica provocada pela tecnologia justamente no filme mais tecnológico de todos os tempos. Cameron concede que "a solução para salvar nosso planeta também passa pela tecnologia". Mesmo a dramática profecia de 1984, o romance em que George Orwell alerta para os perigos totalitários do avanço tecnológico, foi demolida pelos avanços tecnológicos. Em vez de enfraquecerem a democracia, as conquistas digitais são agora um pesadelo para as ditaduras.

A internet carrega em si um gene democrático. Em março, o Google, o maior site de buscas do mundo, abandonou o mercado da China, com 400 milhões de usuários, em repúdio à censura da ditadura chinesa na internet. "É um momento histórico", festejou o professor Xiao Qiang, da Universidade da Califórnia, que estuda os efeitos da internet na imprensa e na política da China. No ano passado, os jovens iranianos chamaram atenção para seus protestos contra a fraude eleitoral através do Twitter. Yoani Sánchez denuncia ao mundo a vida sob a ditadura cubana através do seu blog. Diz Nina Hachigian, da American Progress, que estudou a internet na China: "A internet, incluindo blogs e Twitter, é uma ameaça política no sentido de que mudou, em definitivo, a dinâmica dos eventos políticos. Os governos não podem esconder informações com a facilidade de antes, mas a internet não é uma ameaça incontornável".



Como força que armazena e difunde informação, a internet é arrebatadora. A Biblioteca de Alexandria, a mais vasta da Antiguidade, reunia 700 000 volumes, até ser criminosamente incendiada. Marco Antônio ofereceu os 200 000 volumes da biblioteca de Pérgamo como prova de amor por Cleópatra. Hoje, só a Amazon tem 500 000 títulos à venda on-line - cada um leva sessenta segundos para ser transmitido por ondas eletromagnéticas ao Kindle, o leitor eletrônico. É impossível censurar o conteúdo de nuvens (o termo técnico para a rede difusa de armazenamento de dados digitais acessados via internet), e as ondas não podem ser incineradas.



A internet criou o "paradoxo da modernidade". Ele se traduz pela absoluta necessidade que regimes de força têm das novas tecnologias para modernizar suas economias de modo a saciar a fome do povo. Mas, junto com o empuxo econômico, a tecnologia digital, baseada no conhecimento, traz a necessidade e a possibilidade do arejamento político. A "diplomacia digital" dos Estados Unidos aposta na força desse paradoxo para enfraquecer regimes ditatoriais. Procura revestir a liberdade de expressão na rede mundial de computadores dos mesmos atributos de bens universais, como o espaço aéreo ou as rotas de navegação. Em março, a Casa Branca anunciou o fim da restrição à exportação de serviços de internet para o Irã, Cuba e Sudão. A ideia é que essas nações hostis sejam contaminadas pelo "paradoxo da modernidade". Em artigo publicado no The Wall Street Journal, o professor Evgeny Morozov, da Universidade Georgetown, resumiu, provocativamente: "Google, Facebook e Twitter são agora meras extensões do Departamento de Estado". É improvável que a "diplomacia digital" obtenha sucesso em um prazo curto. Mas também não parece razoável que, por ser americana, dê ensejo a um "neoludismo", cujos seguidores saiam à noite cortando cabos de fibras ópticas para impedir a propagação da internet.



A tecnologia não é a invenção de um gênio solitário. Ela é o resultado do acúmulo de conhecimento. A tendência é que, quanto mais conhecimento houver, mais tecnologia venha a ser produzida. Essa é sua força. O caráter cumulativo da criação tecnológica explica a velocidade geométrica das novidades e está na base da "singularidade tecnológica". Essa é uma teoria segundo a qual o tempo e o esforço gastos para dar os primeiros passos em uma determinada tecnologia tendem a diminuir drasticamente no caminho evolutivo. Passaram-se séculos entre o primeiro livro impresso e o pioneiro Kindle. Entre o Kindle e algo tão espetacular quanto, digamos, um projetor holográfico tridimensional miniatura de páginas impressas podem se passar apenas alguns poucos anos. A singularidade assusta por prever que, em um futuro de décadas, as máquinas serão infinitamente mais poderosas do que o cérebro humano na sua capacidade de pensar. Isso porque, na capacidade de processar dados, o cérebro humano já perdeu a corrida no século passado.


Ei-nos de volta ao Frankenstein de Mary Shelley - ou seja, à tecnologia ganhando impulso autônomo e abrindo às máquinas a possibilidade de levantar-se contra a humanidade. A revolução robótica é tema recorrente no cinema desde que o diretor alemão Fritz Lang deu alma ao robô Maria no estupendo Metropolis, de 1927. O enredo já apareceu em enlatados, em obras-primas como Blade Runner, de 1982, e avançou para Matrix, de 1999, em que os humanos, já subjugados, é que se rebelam contra a opressão das máquinas. A ansiedade humana em relação à evolução tecnológica, tão clara na atmosfera claustrofóbica da ficção científica, tende a se ampliar à medida que o conhecimento tecnológico vai se sofisticando. É preciso ensinar tecnologia às massas, prega Alec Broers, ex-presidente da Academia Real de Engenharia da Inglaterra e pioneiro da nanotecnologia. Só assim se vencem os mitos e a ingenuidade. Geração de energia e transporte são as áreas em que a tecnologia é mais criticada porque acumula dióxido de carbono na atmosfera e destrói a camada de ozônio. Mas as duas áreas em que pode trazer as melhores soluções são, exatamente, energia e transporte. É isso que Al Gore percebeu ao reconhecer a tecnologia como a aposta para salvar o planeta - já que renunciar a ela é apenas um atalho para a barbárie.


Sendo moralmente neutra, a tecnologia pode servir ao bem ou ao mal. O rádio transmitiu a voz de Franklin Roosevelt para ajudar os americanos a atravessar o calvário da Depressão nos anos 30 e vencer a II Guerra. Do outro lado do Atlântico, o mesmo rádio amplificou os discursos de Adolf Hitler e hipnotizou os alemães num projeto diabólico. "A tecnologia pode tanto promover o autoritarismo como a liberdade, a escassez como a fartura, pode ampliar ou abolir o trabalho braçal", escreveu o filósofo Herbert Marcuse (1898-1979), em Tecnologia, Guerra e Fascismo. O DDT é um santo remédio contra tifo, malária e febre amarela, porque mata os insetos que transmitem essas doenças. Aplicado às toneladas na agricultura, virou veneno para a ecologia, reduzindo a população de pássaros e peixes. O agente laranja é um eficiente herbicida, foi muito utilizado no manejo de florestas no Canadá e na Malásia, mas virou arma na mão dos militares americanos no Vietnã. Na tecnologia, tudo depende do fim para o qual ela é empregada. Sua demonização é uma inutilidade.


Metade da humanidade jamais usou um aparelho de telefone. Há mais telefones em Montreal do que em Bangladesh. A tecnologia, ainda que desigualmente distribuída, é a melhor metáfora da trajetória humana na Terra. A própria civilização começou quando os humanos passaram a utilizar as primeiras tecnologias. "Graças à tecnologia, hoje vivemos o bastante para ver nossos filhos e netos crescer. Quem imagina que estaríamos melhor sem a tecnologia moderna precisa pensar nas durezas da vida da Idade Média", diz W. Brian Arthur, autor de The Nature of Technology, que tem, ele mesmo, uma relação de amor e ódio com a tecnologia. O pensamento religioso, traduzido na ideia de que somos criaturas divinamente concebidas, tende a turvar a percepção de que nossa condição natural é miserável. No tempo das cavernas, tudo era pior: o medo, a dor, a fome, a doença, o frio. A tecnologia nos retirou dessa miséria. Não a todos, mas o pedaço da humanidade que ainda vive na dor e na miséria sairá de lá com mais, e não menos, tecnologia.


A revolução da tecnologia da informação está causando um impacto imenso nas ciências: na sociologia, na psicologia, na biologia, na neurologia. Todas precisam saber, e pouco sabem, do impacto dessa tecnologia e seu imenso volume de informação no comportamento das sociedades e dos indivíduos. O mundo não é mais o mesmo - e faz pouco tempo que mudou. Em Ulysses, que começou a ser publicado em 1918, James Joyce faz seu Leopold Bloom lamentar que a sabedoria popular não encontre vazão na produção literária, sempre tão distante do homem comum. O filósofo Walter Benjamin, morto em 1940, dizia que o homem simples e comum almejava "ser reproduzido", mas a indústria cinematográfica, por cobiça, negava-lhe a realização dessa ambição. Até esse sonho a tecnologia do século XXI materializou. O que é o YouTube senão o púlpito do homem comum com audiência planetária? Singelas mas sábias são as palavras de Alec Broers: "A tecnologia é nossa amiga".

Confira in: http://veja.abril.com.br/050510/nossa-melhor-aposta-p-132.shtml

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