Sobre a atual vergonha de ser brasileiro







Affonso Romano de Sant'Anna*


(O texto foi publicado diante da pesquisa que apontava F.H. C. na presidência da República como o brasileiro que mais envergonhava o país;  o cronista se vê forçado a publicar um texto de 17 anos atrás, atualíssimo)


Que vergonha, meu Deus! ser brasileiro


e estar crucificado num cruzeiro


erguido num monte de corrupção.


Antes nos matavam de porrada e choque


nas celas da subversão. Agora


nos matam de vergonha e fome


exibindo estatísticas na mão.


Estão zombando de mim. Não acredito.


Debocham a viva voz e por escrito


É abrir jornal, lá vem desgosto.


Cada notícia é um vídeo-tapa no rosto.


Cada vez é mais difícil ser brasileiro.


Cada vez é mais difícil ser cavalo


desse Exu perverso


nesse desgoverno terreiro.


Nunca vi tamanho abuso.


Estou confuso, obtuso,


com a razão em parafuso:


a honestidade saiu de moda


a honra caiu de uso.


De hora em hora a coisa piora:


arruinado o passado,


comprometido o presente,


vai-se o futuro à penhora.


Valei-me Santo Cabral


nessa avessa calmaria


em forma de recessão


e na tempestade da fome


ensinai-me a navegação.


Este é o país do diz e do desdiz,


onde o dito é desmentido


no mesmo instante em que é dito.


Não há lingüista e erudito


que apure o sentido inscrito


nesse discurso invertido.


Aqui o discurso se trunca:


o sim é não. O não, talvez.


O talvez, nunca.


Eis o sinal dos tempos


este o país produtor


que tanto mais produz


tanto mais é devedor.


Um país exportador


que quando mais exporta


mais importante se torna


como país mau pagador.


E, no entanto, há quem julgue


que somos um bloco alegre


do ‘‘Comigo Ninguém Pode’’


quando somos um país de cornos mansos


cuja história vai dar bode.


Dar bode, já que nunca deu bolo,


tão prometido pros pobres


em meio a festas e alarde


onde quem partiu, repartiu


ficou com a maior parte


deixando pobre o Brasil.


Eis uma situação


totalmente pervertida


-- uma nação que é rica


consegue ficar falida,


o ouro brota em nosso peito,


mas mendigamos com a mão,


uma nação encarcerada


que doa a chave ao carcereiro


para ficar na prisão.


Cada povo tem o governo que merece?


Ou cada povo


tem os ladrões a que enriquece?


Cada povo tem os ricos que o enobrecem?


Ou cada povo tem os pulhas


que o empobrecem?


O fato é que cada vez mais


mais se entristece esse povo num rosário


de contas e promessas num sobe e desce de prantos e preces.


C’est n’est pas um pays sérieux!


já dizia o general.


O que somos afinal?


Um país-pererê? folclórico? tropical?


misturando morte e carnaval?


Um povo de degradados?


Filhos de degredados


largados no litoral?


Um povo-macunaíma


sem caráter-nacional?


Por que só nos contos de fada


os pobres fracos vencem os ricos nobres?


Por que os ricos dos países pobres


são pobres perto dos ricos


dos países ricos? Por que


os pobres ricos dos países pobres


não se aliam aos pobres dos países pobres


para enfrentar os ricos dos países ricos,


cada vez mais ricos, mesmo


quando investem nos países pobres?


Espelho, espelho meu!


há um país mais perdido que o meu?


Espelho, espelho meu!


há um governo mais omisso que o meu?


Espelho, espelho meu!


há um povo mais passivo que o meu?


E o espelho respondeu


algo que se perdeu


entre o inferno que padeço


e o desencanto do céu.



Texto extraído do jornal "O Globo" - Rio de Janeiro

*Affonso Romano de Sant'Anna é um caso raro de artista e intelectual que une a palavra à ação. Com uma produção diversificada e consistente, pensa o Brasil e a cultura do seu tempo, e se destaca como teórico, como poeta, como cronista, como professor, como administrador cultural e como jornalista.
Com mais de 40 livros publicados, professor em diversas universidades brasileiras - UFMG, PUC/RJ, URFJ, UFF, no exterior lecionou nas universidades da California (UCLA), Koln (Alemanha), Aix-en-Provence (França). Seu talento foi confirmado pelo estímulo recebido de várias fundações internacionais como a Ford Foundation, Guggenheim, Gulbenkian e o DAAD da Alemanha, que lhe concederam bolsas de estudo e pesquisa em diversos países.
Nascido em Belo Horizonte (1937), desde os anos 60 teve participação ativa nos movimentos que transformaram a poesia brasileira, interagindo com os grupos de vanguarda e construindo sua própria linguagem e trajetória.
Data desta época sua participação nos movimentos políticos e sociais que marcaram o país. Embora jovem, seu nome já aparece nas principais publicações culturais do país. Por isto, como poeta e cronista foi considerado pela revista “Imprensa”, em 1990, como um dos dez jornalistas que mais influenciam a opinião de seu país.

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