A voz dissonante de Joaquim Nabuco

Para o político, o atraso advém da escravidão e não da miscigenação



A voz dissonante de Joaquim Nabuco

ANGELA M. ALONSO

Em 1883, como parte da campanha abolicionista que tomava o país, aparecia "O Abolicionismo", panfleto escrito pelo jovem político Joaquim Nabuco (1849-1910).
O livro, orientado para a atuação política, apresentava uma análise sociológica formulada a partir de um radicalismo crítico nunca antes aplicado à análise do país. Face ao grosso da geração de jovens intelectuais de fins do Segundo Reinado, que, calcada nas teorias cientificistas aportadas entre nós nas últimas décadas do século 19, explicava o atraso brasileiro tendo por base o determinismo biológico ou histórico, Nabuco discrepava.

Muito embora aceitasse as conclusões da ciência de seu tempo no que diz respeito a uma hierarquia biológica entre as raças, sua interpretação do Brasil foi construída de uma perspectiva política, e não cientificista, que buscava investigar as condições mais profundas para a efetivação da modernidade no Brasil

Sua questão central não era a adaptabilidade da civilização européia em terras tropicais ou os males que poderiam advir da mistura de raças, mas identificar os alicerces do atraso brasileiro. Isto é, Nabuco subvertia as emergentes explicações dos teóricos raciais: não seria a miscigenação o cerne do problema, mas uma instituição social, a escravidão, decorrente de uma organização social específica, esta sim responsável pela degeneração não apenas do escravo como também do senhor.



Ou seja, ao invés da raça, Nabuco toma a escravidão, como relação social paradigmática, como categoria central para análise da sociedade brasileira tomada como totalidade.

A escravidão assume, portanto, uma importância epistemológica; sendo o próprio motor interno de funcionamento da sociedade brasileira, nela deveria ser buscada a raiz dos males nacionais.
Nabuco apresenta, portanto, a instituição da escravidão, e não a raça negra, como origem dos problemas; degenerado é o homem que vive em cativeiro, é o escravo, não o negro. Nabuco —eis aí a novidade— concede a escravidão como uma relação de dominação, a qual supõe uma mútua dependência e uma mútua desqualificação de senhores e escravos.

Sendo a marca de seu atraso, a escravidão, com suas implicações políticas, econômicas, jurídicas e morais, impossibilita não apenas o progresso material do país, mas impede a formação da própria nação. Neste sentido, ao invés de acompanhar a onda de explicações biologizantes, Nabuco opta por uma explicação sociológica— não é um fator atávico que causa o atraso, mas uma instituição criada e mantida pela sociedade.

Daí a possibilidade de reversão do atraso estar posta fundamentalmente na mudança desta instituição e de seus efeitos. Isto é, as transformações de que o país necessitava para entrar no concerto das nações civilizadas passariam por uma mudança da estrutura política, em seu sentido mais amplo, e não por intervenções eugênicas, já que apenas politicamente poderiam se deslindar os nós górdios de nosso atraso.
É claro que Nabuco não atravessou incólume a onda das teorias raciais, não deixou de tomar os africanos e asiáticos como atrasados em relação aos europeus e de considerar nefasta a miscigenação quando estava em pauta a imigração chinesa para o Brasil.


Porém, sua ênfase está nas condições sociais desse processo. A questão será tomada a partir da inserção do Brasil no movimento capitalista internacional, o que significava instaurar aqui seus pressupostos: trabalho livre e cidadania. É justamente a contradição entre as leis liberais, orgulho do Império, e a realidade crua da escravidão que Nabuco vai apontar.

A constituição do Império trazia inscrita em sua própria letra a garantia das liberdades, mas incluía entre elas a própria liberdade de possuir escravos. Sendo a cidadania a condição do capitalismo moderno, punha-se a claro sua incompatibilidade com o trabalho escravo.


Nabuco aponta que o problema está na escravidão em si como parte necessária que era de uma sociedade baseada no latifúndio agro-exportador e na monocultura. De nada adiantaria trocar os negros por qualquer outro povo, ainda que fossem colonos europeus, se não houvesse uma reforma social completa, passando pela reforma agrária, pela mudança de leis e costumes e pelo enquadramento de escravos e senhores em um regime de equidade, pelo qual ambos se tornassem cidadãos.

Muito embora Nabuco visse vantagens na imigração européia, seu foco está posto na transformação da própria sociabilidade brasileira porque a boa imigração, assim como a tão almejada civilização, só se efetivaria no Brasil se o país lhe oferecesse o que tinha na Europa ou nos Estados Unidos: cidadania e capitalismo.

Nesse sentido, o liberalismo de Nabuco é mesmo um "novo liberalismo": visava garantir não apenas as condições econômicas do capitalismo —os direitos econômicos e políticos— mas enfatizava, fundamentalmente, a aquisição de direitos sociais.
Isto é, postulava que o liberalismo econômico, pilar do Império, sem democracia social efetiva jamais alçaria o Brasil à condição de nação civilizada.


A radicalidade de sua análise sociológica não o levou, porém, a  uma aposta revolucionária; monarquista que era, Nabuco investiu em reformas sociais e políticas internas ao quadro institucional do Império. A República viria solapar seu reformismo; mudando o regime político sem transformar a sociedade, nos legou, sem resolvê-los, os pontos de estrangulamento do Império que Nabuco tão bem diagnosticou.
ANGELA M. ALONSO é doutora em Sociologia pela USP.
In: http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/zumbi_25.htm

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