Quem copia também cria
Reproduções de telas francesas feitas por Victor Meirelles revelam a trajetória de um dos principais nomes da arte brasileira
Fernando C. Boppré
Grandes artistas normalmente lembram grandes obras. Não é diferente com o pintor brasileiro Victor Meirelles (1832-1903), que é facilmente associado à sua tela “A primeira missa no Brasil.” Mas, neste caso, é possível trilhar um caminho bem menos óbvio. No andar superior do Museu Victor Meirelles, em Florianópolis (SC), encontram-se, lado a lado, duas pequenas telas que são cópias de pinturas francesas feitas por Meirelles: “O naufrágio da Medusa” e “As mulheres suliotas”.
Primeira Missa
De modo geral, cópias são entendidas como exercícios menores em relação aos quadros ditos “originais”. Na obra de Meirelles, a atenção se volta quase exclusivamente para as grandes telas a óleo com referências à História do Brasil, como “Combate Naval do Riachuelo” (1872) ou “Batalha dos Guararapes” (1879), deixando de lado os quadros e desenhos de menor porte. Mas as reproduções nos levam ao seu período de aprendizagem na Europa, indicando a formação de um dos maiores nomes da pintura brasileira do século XIX.
Batalha dos Guararapes
Meirelles não escolheu por acaso as telas francesas que estão expostas no Museu do Louvre, em Paris. “O naufrágio da Medusa” (“Le Radeau de la Méduse”, 1819), do francês Théodore Géricault (1791-1824), e “As mulheres suliotas” (ou “Les femmes suliotes”, 1827), do holandês Ary Scheffer (1795-1858), já eram ícones da pintura francesa quando foram reproduzidas em 1857 e 1858. Telas que são representantes importantes do movimento e revelam, assim, vertente romântica do pintor brasileiro.
Característica do romantismo, a temática mórbida certamente exerceu fascínio sobre Meirelles e é comum aos dois quadros. A intensidade e a quantidade de representações da morte assumidas na paleta destes artistas chamam atenção. Scheffer poderia ser considerado, junto com Géricault, o pintor mórbido por excelência. Há mais de uma dezena de títulos em que os dois se dedicaram a cenas de morte. Ary Scheffer, por exemplo, chegaria a pintar a própria mãe morta, em tela de 1839 que hoje se encontra no Museu Dordrecht, na Holanda.
A tela de Géricault retrata os sobreviventes de um naufrágio em uma jangada construída com os restos de um navio. O quadro faz referência a um episódio verídico que ocorreu em 1816, quando La Méduse, fragata da Marinha francesa, ficou quinze dias à deriva no Oceano Atlântico. A embarcação levava centenas de pessoas que iriam colonizar o Senegal e acabou naufragando na costa da Mauritânia, por conta de uma série de imprudências do comandante.
Durante esse período, os náufragos sobreviveram na jangada improvisada em condições subumanas e tiveram até que praticar o canibalismo. É justamente esta situação extrema – em seu caráter derradeiro – que Géricault procurou expressar em sua tela. “Nem a poesia nem a pintura poderão dar conta do tamanho do horror e da angústia suportados pelas pessoas da jangada”, escreveu o artista.
Scheffer, que teve uma carreira inteiramente transcorrida na França, retrata, em “Les femmes suliotes”, a agonia do povo montanhês grego que foi aniquilado pelas tropas de um sultão da Turquia em 1803. Conscientes das atrocidades que as aguardavam caso fossem capturadas, as mulheres assassinaram seus filhos e se suicidaram atirando-se em um precipício. É, sem dúvida, uma das telas mais trágicas da história da arte.
Meirelles entrou pela primeira vez em contato com essas telas durante o período em que estudou na Europa. Na França – onde passou quatro anos –, ele foi aluno de Léon Cogniet (1794-1880), que desde cedo se alinhara aos grupos românticos. Cogniet fizera parte do ateliê considerado a grande matriz para a geração de pintores românticos e teve como mestre o célebre Pierre-Narcisse Guérin (1774-1833). Para se ter uma ideia, a proeminente oficina teve como aluno Eugène Delacroix (1798-1863), que pode ser considerado um dos maiores representantes da pintura romântica francesa. Também passaram por lá Géricault e Scheffer. Mestre de Meirelles, Cogniet faria a ponte entre seu pupilo e o trabalho desses dois pintores.
O artista brasileiro também vivia em um ambiente que recomendava a cópia dos grandes mestres, assim como o exercício do desenho da natureza e da Antiguidade. O estímulo às reproduções vinha do outro lado do Atlântico. No Brasil, o responsável pelo pedido de prorrogação do pensionato europeu de Meirelles, o diretor da Academia Imperial das Belas Artes do Rio de Janeiro, Manuel de Araújo Porto-Alegre, remetera instruções do corpo docente para a estada do artista em Paris. Em carta datada de abril de 1856, enumera as atribuições de Meirelles. Entre elas, constava a pintura de diversas cópias a partir dos “grandes mestres” para serem enviadas ao Rio de Janeiro. Elas seriam utilizadas junto à nova geração de pintores, alimentando assim o sistema de ensino acadêmico.
Na mesma carta, Porto-Alegre assinalava sua expectativa em relação ao impulso que a capital francesa poderia proporcionar ao seu protegido: “Colocado na nova Atenas, poderá V.S. aí estudar amplamente o desenho, pois que em Paris se acham todos os meios possíveis para facilmente se chegar a uma grande perfeição nesta parte da arte”. Correspondendo às expectativas, o artista ingressou na Escola Imperial e Especial de Belas Artes de Paris (a atual Escola Nacional Superior de Belas Artes da França) em 1857.
A evolução de Meirelles durante o período em que esteve na instituição pode ser comprovada pelos prêmios que recebeu. No ano escolar de 1858-59, ele conquistou o terceiro lugar no “Concurso de medalhas a partir da natureza”, na categoria de “Figuras desenhadas”, e no ano de 1859-60, obteve a mesma colocação no “Concurso a partir da Antiguidade”.
Foi durante o pensionato artístico francês que Victor Meirelles pintou sua grande obra, “A primeira missa no Brasil”. A imensa tela foi exposta pela primeira vez no Salão de Paris de 1861, ano em que ele retornaria ao Brasil. No entanto, encarar a passagem do pintor pela Europa apenas como o momento de preparação para sua obra-prima é simplificar sua trajetória. Um olhar sobre a parte considerada marginal da produção do artista, ou seja, o estudo das cópias, dos esboços e mesmo das telas localizadas em museus e acervos periféricos, amplia e torna mais completa a visão sobre seu trabalho.
Meirelles iniciou sua temporada de oito anos na Europa em 1853, quando chegou a Roma. Tomou por mestre Tommaso Minardi (1787-1876) e, posteriormente, Nicola Consoni (1814-1884). Minardi fora mestre de Consoni e se destacou como um dos líderes do movimento purista que primava pela alta qualidade nos desenhos e pelo senso de abstração.
O brasileiro cumpria um itinerário de viagens que era considerado imprescindível para a formação de qualquer artista dos séculos XVIII e XIX, o chamado Grand Tour.
Depois de três anos de estudo na Itália, ao chegar a Paris ele já tivera contato com obras fundamentais da história da arte que se encontravam em museus, igrejas e galerias do país mediterrâneo. A estada provocou um grande efeito no pintor brasileiro, que até então jamais saíra de sua terra e tivera sua formação calcada na observação das cópias e das gravuras disponíveis na Academia.
Ao se dedicar às reproduções das telas de Géricault e Scheffer, Victor Meirelles com certeza refletira exaustivamente sobre suas composições e sobre o caráter implacável do seu tema central: a morte. É bem possível que essa experiência lhe tenha fornecido o repertório necessário para pinturas como “A morta” (também pertencente ao Museu Victor Meirelles) e mesmo “Moema”, de 1866 (acervo do Museu de Arte de São Paulo).
A partir desses quadros, a trajetória pode ser pensada para além da pintura histórica. As telas mostram a experimentação de Meirelles em torno de questões humanas. Não eram somente fatos grandiloquentes que estavam em jogo, mas um pensamento pictórico baseado na ausência que uma morte é capaz de suscitar. Lado a lado, em Florianópolis e em Paris, as telas – tanto as cópias como as originais de “O naufrágio da Medusa” e “As mulheres suliotas” – representam a ligação de Meirelles com o romantismo e o seu aprendizado para expressar a morte.
Fernando Boppré É Pesquisador Do Projeto Victor Meirelles: Documentação E Memória E Autor Da Dissertação “Memória, Coleção E Visualidade: Arthur Bispo Do Rosário, Farnese De Andrade, Hassis E Rosângela Rennó” (Universidade Federal De Santa Catarina, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia:
COLI, Jorge; XEXÉO, Mônica F. Braunscheweiger. Victor Meirelles, um artista do império. Rio de Janeiro: MNBA, MON, 2004.
COELHO, Mário César. “Panoramas Perdidos de Victor Meirelles: aventuras de um pintor acadêmico nos caminhos da modernidade”. Florianópolis: tese de doutorado, UFSC, 2007.
COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira no século XIX? São Paulo: Editora Senac-São Paulo, 2005.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de D. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
FRIEDLAENDER, Walter. De David a Delacroix. Tradução: Luciano Vieira Machado. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001.
Saiba Mais - Sites:
Acessível a todos
O Projeto Victor Meirelles: Memória e Documentação está catalogando a obra completa do artista. O Banco de Dados e Imagens já está disponível na Internet e reúne desenhos, pinturas e estudos, além de fotografias e documentos ligados ao pintor. Patrocinado pela Petrobras, o projeto é a primeira iniciativa do gênero dedicada ao artista e será uma importante fonte de pesquisa sobre esse acervo do patrimônio cultural brasileiro.
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