Alucinações catastróficas

Debate sobre a mudança da lei deve apontar para a gestão dos recursos florestais, de forma racional, científica e participativa, sem desvios de fanatismo ideológico

Sebastião Renato Valverde



Matthias Sandmann/Divulgação



Produção de alimentos é um desafio que precisa ser colocado em destaque na discussão do novo Código Florestal


Ninguém se assusta mais com as desgastadas e ineficientes críticas das ONGs transnacionais à reforma do Código Florestal (fatídica e deturpada Lei 71/65). No entanto, quando notórios professores e pesquisadores fazem coro aos discursos destas, urge a necessidade de alguns esclarecimentos.
De fato, o maior ganho com a mudança na lei florestal não é tanto a aprovação do substitutivo, mas sim o debate sobre a gestão dos recursos florestais, que deve ser feito de forma racional, científica e participativa, diferentemente do fanatismo ideológico dos que se apoderaram da rotulação vulgar entre ruralismo e ambientalismo.
Estão fazendo “tempestade em copo d’água”, com previsões catastróficas sobre a reforma, alegando o aumento do desmatamento, das emissões de CO2, o descumprimento dos acordos internacionais sobre mudanças climáticas, a desertificação na Amazônia, a extinção de milhares de espécies, além de julgarem submissão dos deputados aos interesses dos ruralistas, entre outras atrocidades.
Ora, em primeiro lugar a mudança que foi feita, apesar de ser um avanço, está longe daquilo que a dinâmica da realidade agrária e ambiental exige e que a atual Constituição Brasileira prescreve em seus artigos 23 e 24, delegando poderes aos seus entes para legislarem sobre recursos naturais, desde que não haja conflito com a União e que esta se encarregue de estabelecer normas gerais. Neste contexto, o Código Florestal, fundamentado na Constituição de 1946, passa ao largo de ser recepcionado pela de 1988, haja vista que ele é extremamente pormenorizado, excessivamente restritivo e punitivo, principalmente depois das deformações que sofreu a partir da década de 1980, com o preciosismo advindo do sofisma ambientalista. Isto impossibilita a qualquer estado e município usar da prerrogativa dos artigos constitucionais.

Segundo, que as mudanças adotadas certamente vão privilegiar mais os pequenos produtores que vivem exclusivamente das áreas de preservação permanente (APP), sobretudo as de margens de cursos d’água, e que não têm como cumprir a exigência de Reserva Legal (RL). Por outro lado, também fica difícil entender por que marginalizaram tanto o produtor rural, já que ele nunca recebeu – e continua sem receber – orientação de qualquer órgão público sobre como ocupar sua propriedade nem sobre como proceder perante a lei. Até porque, ninguém, até o fim do século passado, se preocupou com a divulgação e aplicação desta legislação.
Lamentavelmente, virou pecado mortal produzir alimentos acessíveis para saciar a fome não só de brasileiros como de toda a humanidade. Tamanha hipocrisia. Se há erro na forma de ocupação dos solos e ordenamento dos recursos naturais, o que é inegável, há toda uma conjuntura circunscrita nos reflexos das políticas públicas adotadas a partir da metade do século passado, que levou a esse estado caótico de ocupação, mas nada que não seja reparável. E nós, profissionais da área agrária, biológica e ambiental, temos totais condições para corrigir e recuperar essa situação sem ter que desapropriar o produtor, nem propor soluções utópicas de bolsa verde e outras esmolas denominadas de commodities ambientais.
Se a lei não foi cumprida no passado é porque – além de nunca ter sido divulgada nem exigida dos produtores rurais – o interesse do poder público sempre foi o de ocupação à revelia, e ela está longe de ser uma obrigação exequível. Mesmo em sua redação original, quando o tamanho das APPs e RL não tinha sido expandido arbitrariamente. Veja o caso da RL na Amazônia, que de 50% passou, por uma medida provisória que nunca foi votada, para 80% da área da propriedade, a fim de contemplar interesses do aparato ambientalista internacional.

Desta forma, por mais que os deputados da comissão especial de reforma do Código Florestal quisessem fazer mudanças dentro do que a realidade e a Constituição exigem, o que de fato se alterou foi a extinção da exigência de APP nos topos de morro e RL nas propriedades menores que quatro módulos rurais. Além disso, foi criada uma categoria de APP para cursos d’água com largura menor que 5 metros, permitindo aos estados alterarem em 50%, para cima ou para baixo, a largura da APP.

Moratória Outro esclarecimento é que não haverá desmatamentos e nem aumento das emissões de CO2 em virtude desta flexibilização para APP e RL. Toda ela será feita sem o prejuízo da conversão, além de que, no substitutivo, foi proposta uma moratória ao desmatamento. O que de fato tende a acontecer é a não desapropriação daquela parte da propriedade que foi desmatada sob orientação do poder público para produção de alimentos e que, pela lei, é considerada APP (margens e topo de morro).
Ora, insistir em acusar aqueles que são favoráveis à mudança do código como inimigos do meio ambiente é de extrema mediocridade. Ninguém em sã consciência iria se expor perante a sociedade, menos ainda os deputados em ano eleitoral, num cenário pró-discurso ambientalista. Não seria mais fácil defender a lei como está do que ser contra, se expondo gratuitamente perante a opinião que a mídia e as ONGs tentam impor à sociedade?
A verdade é que, se com este Código Florestal quase 100% das propriedades não conseguirão cumpri-lo, independentemente do porte, pior ainda para as pequenas propriedades familiares. Nessa situação, em que nenhum produtor consegue cumprir a lei, será que esta, que nasceu, constitucionalmente, letra morta e que sofreu danos redacionais a partir de 1980, está certa? Será mesmo que ela é tão boa como os que a defendem dizem, chegando ao absurdo de afirmar que é a melhor do mundo? Seriam os deputados pró-mudança submissos aos interesses do agronegócio? Ou, ao contrário, seriam aqueles que defendem esta lei – incapaz de atender os anseios sociais dos rurais – submissos aos interesses dos poderosos interesses internacionais que subornam e manipulam ONGs para continuar sobrevivendo num mercado cada vez mais dominado pelo agronegócio brasileiro? Eis as perguntas que exigem reflexão.
Não obstante as dúvidas que ainda pairam, lamentavelmente, não é necessário ser vidente para apontar que em no máximo cinco anos depois da aprovação deste projeto de lei estaremos rediscutindo tudo isso, já que a norma não será ainda capaz de atender a realidade do campo, uma vez que se apresenta parametrizada e generalista, impossibilitando que estados e municípios possam legislar com base em suas especificidades.

Com isso, minha preocupação é que, no futuro, os atuais críticos e as entidades públicas que foram aliciadas pela empáfia do discurso barato ambientalista massacrem os produtores. Pois estes, independentemente do porte, vão continuar na ilegalidade por não terem como cumprir a lei que está sendo proposta, mesmo com alterações. Se hoje a divulgação estereotipada que fazem de que a proposta que está aí vem dos representantes do produtor rural, qual a alegação que os produtores terão por continuar descumprindo a lei que eles elaboraram?
Sem submissão Desta forma, o momento é oportuno para que técnicos da assistência rural e da gestão florestal dos órgãos públicos saiam da submissão e da posição de coadjuvante e tomem as rédeas da construção de um novo regramento para as questões florestais, mais próximo das especificidades de cada ambiente regional.
Tenho certeza de que eles já estão preparados para isso. Ate porque são vítimas desta legislação, corroborada pela corresponsabilidade do dano ambiental imposta pela Lei 9.605/98, que coage técnicos a praticar uma política florestal sob comando e controle incompatível com a realidade social dos pequenos produtores e trabalhadores rurais.
É hora de o poder público também se redimir das políticas equivocadas de uso e ocupação das terras que impôs aos produtores, seja para garantir o título da posse, seja para ocupar as várzeas e os topos de morro dos diversos programas estabelecidos.
Temos que virar a mesa para ser protagonistas nesta mudança. Construir leis e instrumentos de gestão florestal que de fato conciliem a produção de alimentos com a necessidade de proteção, seguindo princípios de sustentabilidade técnica, social e econômica. Não há mais espaço para que pessoas e entidades ditatoriais continuem arbitrando nessa seara com base em alucinações ideológicas, inadequadas e retrógradas.
Venceu-se uma batalha com a aprovação deste substitutivo, mas o tempo consiga dissipar o ódio e o preconceito que as pessoas ainda têm sobre os produtores rurais e sobre aqueles que defendem a mudança deste código, para que melhore a qualidade do diálogo.

Sebastião Renato Valverde é professor de política e gestão florestal do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Vicosa (UFV). Engenheiro florestal, mestre e doutor em ciências florestais. Coordenador do curso de graduação em engenharia florestal.

IN: ESTADO DE MINAS.

Comentários

  1. PARA EVITAR ALUCINAÇÕES O MELHOR REMÉDIO É A INFORMAÇÃO

    Em andamento, pela Federação da Agricultura do Estado do Espírito Santo e apoio do NEPA, uma pesquisa de âmbito estadual voltada ao estudo da percepção ambiental dos produtores rurais (o que pensam, sobre meio ambiente, os produtores rurais do ES?).

    Roosevelt S. Fernandes
    Núcleo de Estudos em Percepção Ambiental / NEPA
    roosevelt@ebrnet.com.br

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