O intolerável e a tolerância




Ben Kingsley no papel de Gandhi, no filme de Richard Attenborough: quando gestos poéticos fazem a diferença

Não há debate mais importante hoje, seja no âmbito da sociedade seja na relação entre indivíduos, que a questão da diferença. A sociedade pós-moderna, gostemos ou não do rótulo, é o campo das diferenças em contato permanente. Quando se fala em pós-modernidade, há duas acepções que nos vêm à mente: a primeira parece ser positiva, como se vivêssemos no terreno das promessas da modernidade, cumpridas em seus propósitos generosos. A outra definição, mais ligada a certa estética da existência, toma a pós-modernidade como território compósito, de fricções, contágios, mesclas. A igualdade é moderna; a liberdade é pós-moderna.

Nesse cenário, vivemos cada vez mais provocados por estímulos morais, psicológicos, ideológicos, políticos e estéticos a nos mostrar que não há mais uma bússola universal. Tudo é possível. A esse universo pleno de possibilidades podemos reagir de várias formas, desde a aceitação da diferença até o combate a toda forma de distinção. Há quem goste de integrar tudo, de aceitar, por prazer da diversidade, que o diferente é nosso limite a ser transposto. Por outro lado, há os que têm certezas e projetos bem ordenados, que se sentem órfãos de estrutura e querem um mundo mais organizado em termos de valores.

Tolerância virou, com toda razão, virtude civilizadora. A democracia moderna ensinou que a vontade da maioria não se sobrepõe aos desejos da minoria. Se democracia pode ser traduzida como conflito (o que é bom), nem por isso significa guerra dos mais fortes (ou mais votados) contra os mais fracos (ou minorias). A resolução de conflitos, quando feita democraticamente, traz para a arena pública as chaves da conciliação, do diálogo, do consenso dinamicamente reformado. Cada um cede um pouco para que todos ganhem. Em democracia, sinais iguais se somam, não se anulam.

Por isso, tolerância é um valor a ser cultivado. Podemos conviver com diversas confissões religiosas, com diferentes escolhas ideológicas, com variadas opções individuais em termos de comportamento e moral. O outro não é um inimigo. Tolerar, nesse sentido, é também operação de conhecimento. Quanto mais me disponho a entender as razões do outro, mais amplio meu campo de compreensão dos homens e da sociedade. O cidadão tolerante, além disso, pode conviver em paz com outros cidadãos, mesmo que esses façam escolhas que se afastem de seus princípios. O limite do respeito à diferença é mais um esforço de aprimoramento pessoal que de julgamento do outro.

Se de um lado a tolerância engrandece, nem por isso anestesia o senso do intolerável. Há coisas com as quais não se pode compactuar, mesmo que apresentadas como demandas organizadas de grupos ou indivíduos. O limite do tolerável são os valores universais que fundam a própria noção de sociedade. Não se pode tolerar a injustiça, a desigualdade, a opressão, a censura, a violência, a ignorância, a corrupção e o preconceito. Lutar para extirpar cada um desses cânceres deve mobilizar as pessoas, ainda que elas discordem da maneira de fazê-lo.

Há pessoas que parecem intolerantes (no sentido pejorativo), quando, na verdade, são campeãs na luta contra o intolerável. Quase sempre, pessoas assim são raras, exibem a face mais radical das possibilidades humanas: o ascetismo ou a militância. Seja na recusa absoluta ou na imersão apaixonada no mundo, são tipos que fazem do combate ao intolerável um motivo para a vida. Simone Weil, Gandhi, São Francisco, Che Guevara e alguns poucos outros dessa estirpe fizeram da luta ao intolerável o campo possível para a expansão da tolerância. Gandhi dobrou a então mais poderosa nação da Terra com o exemplo de sua superioridade moral. E não podia se jactar disso sem perder a razão. A saída foi a adoção de gestos poéticos, como atravessar o país para buscar sal ou fiar a própria roupa.


Ética e estética

Essa mesma lógica pode ser transplantada para vários campos da vida. Nas relações pessoais também há que ser tolerante com as diferenças e batalhar contra o intolerável do desrespeito. Nas situações que colocam em cena grupos com interesses díspares, é preciso separar o que é solo comum de aprimoramento social e o que se traduz como tentativa de inviabilizar o pensamento divergente. Na cultura e na arte, é necessário se abrir para a variedade do gosto e, ao mesmo tempo, ter critérios para saber o que se põe contra a beleza a inteligência. Nem toda manifestação humana é arte, mesmo que toda arte seja expressão do humano. Não é necessário ser tolerante com a pornografia, a incitação à violência e a agressão aos valores sociais.

As eleições, que se aproximam, têm deixado muita gente em dúvida, o que não é novidade. No entanto, parece que desta vez, pelo conhecimento extensivo dos mecanismos de manipulação que fizeram dos marqueteiros magos da despolitização, o eleitor está à busca de novos critérios para avaliar sua confiança. Sabe, com razão, que a propaganda eleitoral não é pra valer; que os programas são respostas à expectativas medidas; que a simpatia é feita de photoshop; que o cargo pretendido muitas vezes é apenas escada para outros interesses.

Nesse cenário, talvez seja útil pôr em ação o método da tolerância e do intolerável. Experimente avaliar cada candidato a partir de sua escala de valores, que certamente coincidem com os princípios universais que fundamentam a democracia. Separe os toleráveis, mesmo que sejam diferentes de você. Descarte os que não admitem a medida da comparação, por defenderem bandeiras que vão contra a vida e a ética. Os que ficaram fazem parte de seu repertório de possibilidades.
Mas o melhor é o que fica para o final: a seleção dos heróis da intolerância.

Precisamos de bons administradores, técnicos e políticos. O que tem feito falta, no entanto, são os que não aceitam, que recusam, que brigam. A sociedade precisa de um grupo de tolerantes, mas necessita, urgentemente, de pessoas que não toleram tudo que nos desumaniza e nos torna piores. Se você não achar nenhum candidato assim, vote nos melhores do primeiro grupo. Não precisa ser santo, asceta, revolucionário ou chato. É só se tornar uma pessoa intolerante. 

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