Olhar do século - Henri Cartier-Bresson



Em reportagens políticas e retratos humanos, Henri Cartier-Bresson deu dimensão artística à fotografia, além de contribuir decisivamente para a valorização do ofício de fotojornalista



Henri Cartier-Bresson
Feira mundial, Bruxelas, 1958
As imagens de Henri Cartier-Bresson (1908-2004) são tão célebres que muitos acreditam conhecer bem seu trabalho, um dos mais sublimes, expressivos e extensos da arte fotográfica do século 20. Além disso, os amantes da fotografia parecem saber das linhas gerais de sua vida, de sua abertura para outras artes (filmes, pintura e desenho), de seu empenho pela elevação moral e técnica do fotojornalismo, de sua ligação com a Agência Magnum, de seus deslocamentos pelo mundo num trabalho ao mesmo tempo etnográfico, estético e político. No entanto, todas essas certezas são apenas o primeiro degrau para o conhecimento da vida e obra do artista, como mostra o volume Henri Cartier-Bresson: o século moderno, de Peter Galassi, lançado pela Editora Cosac Naify, simultaneamente à exposição em cartaz no MoMA. Galassi é o curador da mostra.


Recuperar a trajetória de Cartier-Bresson pode parecer uma operação contra o artista, que sempre se recusou a olhar para trás. A fotografia, em sua aparente sede de registro, é na verdade um ato prospectivo, comprometido com o devir e com o olhar dos contemporâneos. No entanto, felizmente, o curador pôde contar com o empenho da viúva de Cartier-Bresson, a também fotógrafa Martine Franck, que foi casada com o artista de 1970 até sua morte em 2004, que por meio da Fundação Cartier-Bresson recolheu e organizou material que é uma espécie de tradução visual do século passado. Foi com esse acervo e extensa pesquisa que Peter Galassi organizou a mostra em Nova York, no museu que já contava com material doado pelo próprio fotógrafo.


O livro é dividido em três partes, “Mundos antigos, tempos modernos”, um estudo biográfico que revela as várias dimensões da vida de Cartier-Bresson (o fotógrafo, o prodígio, o artista, o idealista, o observador, o profissional, o ilustrador e o historiador), com muitas informações inéditas e surpreendentes; a segunda parte, “Fotografias”, o coração do livro, traz o maior e mais variado conjunto de obras do artista, ordenadas cronológica e tematicamente; por fim, em “Pontos de referência”, um dos diferenciais do volume, uma elaborada cronologia das viagens de Cartier-Bresson com direito a mapas e imagens, o levantamento da obra do fotógrafo na imprensa, cronologia das principais exposições fotográficas e livros, além de aparato bibliográfico e de filmografia selecionada.


Como na fotografia, que busca de alguma forma eternizar o instante (a noção de “momento decisivo” parece ter sido criada para Cartier-Bresson), há situações na vida que parecem carregar em si o germe de toda uma vida. No caso de Cartier-Bresson, um desses turning points foi a exposição que fez no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1947. A mostra, em si, sedimentava um trabalho que vinha desde os anos 1930, com repercussão limitada ao círculo de artistas e especialistas, em trabalho que, de acordo com Galassi, ajudou “ a definir o modernismo fotográfico”. Mais do que a exposição, um encontro no restaurante do MoMA viu nascer a Magnum Photos, uma cooperativa que tinha como projeto dar a seus fotógrafos condições de realizar um trabalho livre e criativo.


Não se tratava apenas de uma direção comercial, com mais cacife para negociar com revistas como Life, mas de um programa que permitisse aos profissionais ir aonde quisessem, para mostrar o que julgavam importante. Cartier-Bresson não fez parte do encontro, mas foi logo incluído no time que tinha também o polonês David Szymin e o húngaro Endre Friedmann, que depois ficou conhecido como Robert Capa. Chamado de André por Cartier-Bresson, Capa (que se autointitulava “o maior fotógrafo de guerra do mundo) foi decisivo na carreira do amigo, sobretudo na decisão de assumir o fotojornalismo como sua principal função, deixando de lado o rótulo de fotógrafo surrealista. Na partilha dos continentes que caberiam a cada profissional (logo se vê que eram ambiciosos), coube a Bresson a Ásia. Tudo que hoje se define como fotografia documental tem a marca da Magnum, agência que até hoje é referência no mundo das imagens.


Peter Galassi recupera ainda a ascendência burguesa do fotógrafo, sua ligação com o surrealismo, sua relação com o comunismo. A dimensão política de seu trabalho está presente em registros e ações durante a Guerra Civil Espanhola, na documentação do cotidiano da China durante a Revolução Cultural, na cobertura da Rússia pós-Segunda Guerra. A mais celebrada de todas as reportagens de Cartier-Bresson na Ásia teve como personagem central o Mahatma Gandhi, em seus últimos dias, em 1948. O fotógrafo acompanhou o último jejum de Gandhi, fez um sensível registro do líder indiano em sua casa, poucos dias antes de ser assassinado por um fanático, e acompanhou a viagem de suas cinzas pela Índia.




Técnica e arte


Se a dimensão do trabalho de Cartier-Bresson está no centro da fotografia do século 20, em suas características estéticas, políticas e profissionais – poucos homens marcaram tanto a maneira de fotografar, o que fotografar e como fotografar –, não se deve esquecer o lado técnico de seu trabalho. Cartier-Bresson, no começo da carreira, cuidava pessoalmente da revelação de seus filmes. Com o correr dos anos, a tarefa passa a ser executada por colaboradores. A decisão pela imagem a ser fixada fazia parte de um trabalho mental, como se desenhasse a foto na mente antes de registrá-la no filme. Algumas vezes, o fotógrafo “dançava” em volta da cena, em busca do enquadramento ideal. Por isso guardava poucos negativos, escolhidos depois de fazer a prova de contato.


O acervo de Cartier-Bresson é um portento. Ele usava filmes de 35mm, com 36 exposições, que numerava cuidadosamente. Em 1976, quando praticamente havia completado seu trabalho, a marca chegava a 14 mil filmes, o que significa cerca de 500 mil fotos no período de três décadas. Somando-se ao meio milhão de imagens a dispersão geográfica, tem-se uma noção do inventário realizado pelo artista. Uma curiosidade é que, em razão de seu trabalho para revistas editadas a milhares de quilômetros do cenário, muitas vezes Cartier-Bresson só veria suas imagens já editadas, semanas e até meses depois. Vem daí seu cuidado obsessivo com o enquadramento (ele não permitia cortes) e com as legendas, que insistia que fossem respeitadas na íntegra.


A fotografia, como comparou certa vez a ensaísta Susan Sontag, parece ter em sua origem uma tendência a fazer turismo de classe, variando de quadros de abjeção social (a denúncia como ética) e de valores do consumo (celebridades e objetos de desejo). Esta dupla militância criou duas escolas de artistas: os cientistas e os moralistas. Para os primeiros, cabe reproduzir o mundo, para os últimos, modificá-lo. Cartier-Bresson foi capaz de burlar as duas tendências, oferecendo uma arte que não se reduzia aos motivos ou à técnica. A palavra-chave para definir a obra de Cartier-Bresson é harmonia, o que coloca um problema: como equilibrar um mundo caótico? O trabalho do fotógrafo, com sua beleza matemática e exatidão ética, superou este paradoxo aparente.


Todas as pessoas têm seu Cartier-Bresson favorito. Pode ser o retrato de Henri Matisse, de 1944, que mostra o artista com uma pomba branca na mão; a cantina dos operários em Moscou, num baile cheio de alegria em meio a cartazes nos quais se percebe sempre o olhar severo de Stalin; o rosto pleno de vitória de um menino que carrega duas garrafas em uma rua de Paris, em 1954; a composição bíblica das mulheres da Cashemira, que parecem dialogar com os elementos da natureza; a mulher com olhar de êxtase frente ao cardeal Pacceli, em 1938; Alberto Giacometti atravessando uma rua em dia de chuva, com a cabeça enfiada no capote e seguindo uma linha imaginária, mas real, pintada no chão.


“É vivendo que descobrimos a nós mesmos ao mesmo tempo que descobrimos o mundo ao nosso redor”, escreveu Cartier-Bresson. Ele sabia que sua arte seria sempre inacabada por definição, não era uma síntese, mas um projeto, no sentido existencialista da palavra. Se tornar o homem que deu olhos ao século foi o destino de Henri Cartier-Bresson. Seu legado, como o trabalho de etnólogos que escavam a dimensão simbólica de culturas perdidas ou em extinção, é uma espécie de compromisso com a história. Sabemos o que fomos. Somos responsáveis pelo faremos disso daqui para a frente. 

IN: ESTADO DE MINAS. Por João Paulo

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