Sambas e marchinhas


Figuras com fantasias carnavalescas. DI CAVALCANTI.

Dos anos 30 a meados dos anos 60, foram compostos, editados e gravados mais de 15 mil sambas e marchinhas – somente para o Carnaval, note bem. Em média quase quatrocentas novas canções carnavalescas por ano. Destas, apenas uma minoria emplacava. Mas as que caíam na preferência do povo eram tocadas até dizer chega e incorporadas ao repertório permanente do Carnaval. Tornavam-se os standards do gênero: sambas como Agora é cinza (1934), Meu consolo é você (1939), Ai que saudade da Amélia (1942), Lata d’ água (1952), e marchinhas como O teu cabelo não nega (1932), Mamãe eu quero (1937), Touradas em Madri (1938), Jardineira (1939), Aurora (1941), Alá-lá-ô (1941), Piada de salão (1954), A lua é dos namorados (1964) – no caso delas a lista não teria fim. O samba podia ser o ritmo nobre do Carnaval e do resto do ano, mas eram as marchinhas que determinavam a temperatura da folia. Sua fórmula era simples: melodias diretas e fáceis de aprender, ritmo frenético para se dançar aos pulos e letras curtas, sacanas, cheias de duplos sentidos.

Nada podia ser mais politicamente incorreto do que as marchinhas. Suas letras eram “ofensivas” a qualquer grupo que você pudesse imaginar: negros, índios, homossexuais, gordos, carecas, gagos, adúlteras, mulheres feias, maridos em geral, patrões, funcionários públicos – para cada um desses temas fizeram-se várias marchinhas arrasadoras. Mas eram tão divertidas ou absurdas que, incrivelmente, ninguém parecia se ofender. Outros alvos eram o custo de vida, os baixos salários, a falta d’ água, o “progresso” e a destruição dos redutos históricos da cidade como a Lapa e a praça Onze. Durante a Segunda Guerra, elas se politizaram e ridicularizaram Hitler e os japoneses. Seus autores eram o creme da música brasileira do período: Ary Barroso, Noel Rosa, Benedito Lacerda, Ataulfo Alves, Herivelto Martins. E havia os especialistas em Carnaval, os reis das marchinhas como Lamartine Babo, João de Barro, Nássara, Haroldo Lobo, Wilson Batista, Roberto Martins, Luiz Antonio, Klecius Caldas, João Roberto Kelly. Eram homens inteligentes e abençoados com uma inesgotável veia melódica e humorística. Graças a eles, o carioca refinou o seu jeito de criticar tudo na base da brincadeira – e também de aceitar a crítica.


Ruy Castro
Carnaval no fogo: crônica de uma cidade excitante demais. São Paulo, Cia das Letras: 2003, páginas 95 e 96



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