O JEITINHO BRASILEIRO



Segundo Roberto Damatta, um dos dilemas básicos da sociedade brasileira é o conflito constante entre as categorias indivíduo X pessoa, expressões de duas vertentes ideológicas centrais do nosso sistema – o individualismo e a hierarquia. Segundo ele, a antipática locução “sabe com quem está falando?” expressaria justamente nossa vertente hierárquica e autoritária, ao passo que o jeitinho encarnaria nosso lado cordial, tão valorizado por nós, dessa mesma vertente.

O “sabe com quem está falando?” ocorre para colocar “cada um no seu devido lugar”, através da hierarquização através do conflito diante de uma situação de face terrível.

No caso do jeitinho, a caracterização não é tão fácil, embora a expressão seja universalmente conhecida e utilizada. Pode ser uma situação de confronto entre uma norma ou a pessoa que a representa e um indivíduo; ou pode ser uma solução individual e criativa para uma determinada situação.
Conceitos chave do “jeitinho”: Outras diferenças ilustrativas podem ainda ser estabelecidas entre as duas locuções. Enquanto o “sabe com quem está falando?” é um ritual de separação, radical e autoritário, de duas posições sociais e, como tal, a negação do jeitinho, da “cordialidade” e da “malandragem” e de todos os aspectos tomados como paradigmáticos em diversas situações para definir o “nosso povo”, a “nossa gente”, o nosso país, o jeitinho poderia ser visto como um ritual de aglutinação. Ele procura justamente juntar, e não separar, os participantes da situação. É destituído de qualquer traço de autoritarismo, pois sua eficácia reside, como já vimos justamente no seu aspecto formal, ou seja, da maneira de pedir o jeito, que se espera ser simpática, cordial, igualitária, etc. E mais, ao invés de marcar as diferenças existentes entre as pessoas, que podem ou não existir do ponto de vista social, ele procura justamente anulá-las, invocando a igualdade entre todos e da própria condição humana.


Por outro lado, se o “sabe com quem está falando?” é uma expressão execrável, antipática, cujo aprendizado é implícito, considerada recurso ilegítimo à disposição dos membros desta sociedade e escamoteada como parte de nossa realidade, o jeitinho circula na direção oposta.



Outro aspecto que contrasta bastante com o “sabe com quem está falando?” é que, enquanto a última locução não pode ser usada por todos – pois nem todos podem sacar do bolso do colete uma identidade no seu lugar – o jeitinho pode e é utilizado democraticamente por todos. Ninguém precisa ser deputado, general, esposa de senador ou empregada de figura de alta sociedade para alcançar seus objetivos através do jeitinho. Ele pode ser dado e conseguido tanto pelo operário como pelo patrão. Qualquer um pode acioná-lo sem ter que lançar mão de sua identidade social. Assim, para o jeitinho, os “cargos” e posições sociais são anulados.

Outro aspecto envolvendo a questão do anonimato é que, enquanto no jeitinho a situação pode começar a terminar anônima, no “sabe com quem está falando?” essa possibilidade está inteiramente excluída. Uma vez acionado este mecanismo, o anonimato, responsável pela igualdade, desaparecerá, para dar lugar ao desvendamento da posição de cada um em nosso esqueleto social, restabelecendo-se, assim, a desigualdade.

É importante, ainda, destacar neste nosso exercício comparativo que o jeitinho é uma relação puramente individual, pois não envolve nada além do que o eu e o outro. No jeitinho, você entra despojado de suas relações mais amplas com a sociedade. Como complemento, é legal descrever os sujeitos típicos do jeitinho: Malandro: elemento intersticial entre dois mundos, um ser quase marginal. Carioca: no conjunto das representações dos tipos brasileiros, encarna a vertente de um Brasil lúdico, preguiçoso, sensual, cheio de manhas e manias, deixando o sucesso econômico e social para o paulista.

Diferenças marcantes também são encontradas nas reações ao uso de cada uma dessas expressões. A pessoa que faz uso do “sabe com quem está falando?” está sujeita a ser motivo de riso, deboche e total desaprovação, arriscando-se a levar um “quem você pensa eu é?”. Por outro lado, o usuário do jeitinho nunca é alvo de uma censura enfática, nem se torna motivo de chiste ou galhofa. O máximo de que pode ser objeto é uma desaprovação condescente que, na maioria das vezes, passa despercebida, por ser quase inconsciente, ou simplesmente recebe a aprovação geral.

E, finalmente, enquanto o jeitinho suscita uma atitude de reciprocidade difusa positiva – “se surgir a oportunidade darei jeitinho também para alguém – o “sabe com quem está falando?” suscita uma reciprocidade direta negativa pois sempre se espera que, um dia, o “cara leve o troco” da humilhação que infligiu ao tentar “ganhar” de alguém com base nas desigualdades sociais existentes. Pela mesma lógica, enquanto o “sabe com quem está falando?” estabelece sempre uma relação negativa entre os participantes desse drama social, no jeitinho a relação tem sempre caráter positivo.

“SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?” X JEITINHO

Faz uso da autoridade e do poder X Faz uso da barganha e da argumentação

Parte do pressuposto que as desigualdades X Parte do pressuposto igualitário
Sociais têm valor

Não é acessível a todos da sociedade em todas X É acessível a todos da sociedade
as situações

A identidade social dos participantes sempre X Pode começar/terminar anonimamente
termina desvendada.

Baseia-se, para sua eficácia, na identidade social. Não depende, exclusivamente, de laços X
Faz uso dos laços com a sociedade mais profundos com a sociedade. Depende basicamente de atributos individuais, da personalidade

Não é conhecido por todos da sociedade X É conhecido por todos da sociedade

É um rito de separação X É um rito aglutinador

A reação ao uso da expressão é sempre enfática X A reação ao uso da expressão é
e negativa predominantemente positiva, a negativa é sempre expressa de forma branda

Suscita reciprocidade direta e negativa X Suscita reciprocidade difusa e positiva

Possui um ritual simétrico oposto X Não possui qualquer situação social que seja a sua simétrica inversa

Estabelece sempre uma relação negativa X Estabelece sempre uma relação positiva


Por fim, tanto o jeitinho como o “sabe com quem está falando?” só podem existir em universos sociais contaminados pela ótica individualista, impessoal, igualitária e anônima.
DAMATTA, Roberto. Canaviais, malandros e heróis. Rio de Janeiro, 1994.

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