O Rio de Janeiro dos cortiços e da “África Pequena




Enquanto a elite dançava e se divertia nos bailes, concertos e passeios na rua do Ouvidor, o contingente populacional que se dirigia ao Rio de Janeiro crescia assustadoramente. O fato de ser o centro administrativo, político e cultural do império tornava a cidade um pólo de atração tanto para as províncias como para os imigrantes estrangeiros. Eram homens livres, escravos, negros forros e foragidos que diariamente procuravam, pelas ruas da cidade, formas de prover sua subsistência. Na década de 1870, os negros e pardos representavam quase metade dos habitantes da cidade, o que causava inquietação na sociedade branca e tornava o Rio de Janeiro um verdadeiro campo de conflitos étnicos.



                                           Obras de Jean Baptiste Debret *
Suas moradias concentravam-se nos distritos de Santana, Cidade Nova, Gamboa e adjacências. Convivendo em certa unidade social e cultural, a região onde essa população habitava é chamada atualmente por alguns historiadores de “África Pequena”. A historiografia contemporânea da cidade adota essa denominação, mas, segundo Eduardo Silva, é necessário que se tomem alguns cuidados, pois apesar de possuir certa uniformidade e traços comuns, ela ainda não formava uma unidade coesa culturalmente, conservando costumes, hábitos e religiões diferentes, além de alimentar antigas diferenças e discórdias originárias da África (Silva, 1997, p. 83).
Enquanto crescia o número de habitantes, a cidade tornava-se de difícil administração e deficitária em termos de equipamentos urbanos. Os antigos problemas de abastecimento, saúde, falta de serviços públicos e dificuldades com relação à moradia se agravaram, atingindo principalmente a população pobre. Eram constantes os relatos acerca das condições sanitárias precárias. Durante as décadas de 1870 e 1880 as epidemias grassavam por toda a cidade, chegando inclusive aos palacetes da elite e ao paço imperial, levando as autoridades a incrementar propostas de reforma e saneamento, só levadas a efeito no início do século 20. No entanto, aos pobres atribuía-se a maior parte da culpa pela insalubridade do Rio de Janeiro. Eram eles, segundo a elite, que atiravam lixo e dejetos nas ruas, não possuíam hábitos de higiene, promoviam a promiscuidade dos corpos em rituais e práticas condenáveis e, sobretudo, viviam em habitações precárias, como os cortiços. João do Rio, jornalista responsável por crônicas memoráveis sobre a vida no Rio de Janeiro, descreveu no início do século 20 uma dessas “casas de africano”:
São quase sempre rótulas lôbregas, onde vivem com o personagem principal cinco, seis e mais pessoas. Nas salas, móveis quebrados e sujos, esteirinhas, bancos; por cima das mesas terrinas, pucarinhos de água, chapéus de palha, ervas, pastas de
oleado onde se guarda o opelé; nas paredes, atabaques, vestuários esquisitos, vidros; e no quintal, quase sempre jabotis, galinhas pretas, galos e cabritos.

Segundo Eduardo Silva,
[...] não se trata apenas, como se pode ver, de uma residência no sentido moderno e ocidental do termo, mas de um espaço misto, entre sagrado e profano, casa de morar e orar. Aqui, utensílios prosaicos de uso no dia-a-dia, como móveis quebrados e sujos […]. Adiante objetos ou componentes dos cultos afro-brasileiros, como terrinas, ervas, atabaques, “vestuários esquisitos”. No quintal, como apêndice da casa, os animais necessários à subsistência tanto quanto ao sacrifício ritual. (Silva, 1997, p.80).

Já os cortiços eram grandes casarões que tinham seus cômodos divididos e subdivididos em pequenos quartos onde habitavam famílias bastante numerosas. O mais conhecido desses cortiços foi o Cabeça de Porco. Considerado pela polícia verdadeiro “valhacouto de desordeiros”, o Cabeça de Porco cresceu durante as décadas de 1870 e 1880, sendo finalmente demolido em 1893, quando chegou a ter sua população estimada em 2 mil a 4 mil pessoas. Nesses cortiços superpovoados abrigavam-se os escravos de ganho que tinham obtido de seus donos a permissão de “viverem sobre si”, libertos e forros que sobreviviam de biscates, capoeiras, prostitutas, pais-de-santo, quituteiras, empregados domésticos etc. Se, por um lado, podemos considerar a África Pequena quase como uma “cidade paralela”, onde os escravos e libertos constituíam redes de solidariedade diversas para burlar e vencer a escravidão, por outro não podemos perder de vista que para a polícia e a elite essa massa se constituía em perigo constante, e sobre ela era preciso exercer um controle efetivo. Na verdade, a população que morava nos cortiços era econômica e socialmente excluída, vivendo no limite impreciso da legalidade e ilegalidade. Sobrevivendo como era possível, fosse de modo lícito ou não, para os habitantes dos cortiços a belle époque passava ao largo. Mas é importante destacar que o panorama delineado para a África Pequena de doenças, pobreza e imoralidade foi construído pela elite, não correspondendo inteiramente à realidade. Lá também era o espaço da festa, celebrações, brincadeiras de rua, enfim, o lugar da sociabilidade dos diversos grupos excluídos daquele outro Rio de Janeiro. O burburinho, os cânticos e danças estavam por todo lado, mesmo em dias comuns. No cotidiano das ruas eram frequentes o som dos tambores, as rodas de lundus e batuques, as estas religiosas que mesclavam catolicismo com rituais africanos, o gingado dos capoeiras, as conversas nas esquinas, a algazarra e gritaria das crianças, as cantorias dos negros carregadores e os pregões dos vendedores ambulantes.

Sugestão de atividade
 Com base no que foi discutido sobre a vida do Rio desse período, dividida entre a corte e a África Pequena, procurem estabelecer comparações com a vida em sua cidade.  Observar o modo de vida, hábitos, festas, habitações dos bairros populares etc., procurando estabelecer comparações com as manifestações culturais e o cotidiano nas áreas de maior poder aquisitivo e examinando o relacionamento entre os dois contextos. Ao final, pode-se realizar um painel com colagens, desenhos, frases, poemas e textos de autores famosos, representativo da vida nas cidades atuais.


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