SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?

A expressão "VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO"

• É cultural?
• Autoritário?
• Racismo?
• É natural? Variantes: Quem você pensa que é?
• Segregação social? 
Onde você pensa que está?
• Antipatia?


Ponha-se em seu lugar!
• É hierarquia?
• É um auto-retrato?
• Oposto do “jeitinho brasileiro”

Existem pelo menos três formas básicas de apresentação (e representação) ritual da sociedade brasileira: o carnaval, a Semana da Pátria e as procissões religiosas da Igreja Católica Romana, e todas estão oficialmente vinculadas à sociedade e à cultura brasileiras através de alguns órgãos do Estado, sendo coletivamente bem marcadas, festividades e ocasiões de profunda motivação político-social.

Outro ritual brasileiro é o “sabe com quem está falando?”, que implica sempre uma separação radical e autoritária de duas posições sociais real ou teoricamente diferenciadas.

O “sabe com quem está falando?”, além de não ser motivo de orgulho para ninguém, dada a carga considerada antipática e pernóstica da expressão, fica escondido de nossa imagem (e auto-imagem) como um modo indesejável de ser brasileiro, pois que revelador do nosso formalismo e da nossa maneira velada (e até hipócrita) de demonstração dos mais violentos preconceitos.

O “sabe com quem está falando?” é a negação do “jeitinho”, da “cordialidade” e da “malandragem”.

A forma de interação batizada pelo “sabe com quem está falando?” parece estar mesmo implantada – ao lado do carnaval, do jogo do bicho, do futebol e da malandragem – no nosso coração cultural. O que ela não tem é uma data fixa e coletivamente demarcada para seu uso ou aparecimento. Temos então dois traços muito importantes no “sabe com quem está falando?”, sendo:

1) Um deles é o aspecto escondido ou latente do uso (e aprendizado) da expressão, quase sempre vista como um recurso escuso ou ilegítimo à disposição dos membros da sociedade brasileira. Consideramos a expressão como parte do “mundo real”, da “dura realidade da vida”.
2) Outro traço do “sabe com quem está falando?” é que a expressão remete a uma vertente indesejável da cultura brasileira. Pois o rito autoritário indica sempre uma situação conflitiva, e a sociedade brasileira parece avessa ao conflito. Tudo indica que, no Brasil, concebemos os conflitos como presságios do fim do mundo, e como fraquezas – o que torna difícil admiti-los como parte de nossa história, sobretudo na suas versões oficiais e necessariamente solidárias.

Temos, assim, que encarar o “sabe com quem está falando?”, interpretando a expressão como um rito de autoridade – um traço sério e revelador da nossa vida social. Se inibimos ou escondemos dos olhos do estrangeiro ou do inocente o “sabe com quem está falando?”, deixando de integrá-lo em nossa visão corrente do que é o Brasil, é certamente porque o rito revela conflito, e somos avessos à crise. Mas o termo, é claro, denuncia um sistema social extremamente preocupado com “cada qual no seu lugar”, isto é, com hierarquia e com a autoridade. O mundo tem de se movimentar em termos de uma harmonia absoluta, fruto evidente de um sistema dominado pela totalidade, que conduz a um pacto profundo entre fortes e fracos. É, portanto, nesse sistema de dominação em que ocorre o conflito aberto é evitado que encontramos, dentro mesmo da relação entre superior e inferior, a idéia de consideração como valor fundamental. Nesse quadro, o conflito não pode ser visto como um sintoma de crise no sistema, mas como uma revolta que deve e precisa ser reprimida.

Nunca tomam a expressão como a atualização dos valores e princípios estruturais de nossa sociedade, mas sempre como a manifestação de traços pessoais indesejáveis. Neste sentido, o “sabe com quem está falando?” seria como o racismo e o autoritarismo: algo que ocorre entre nós por acaso, sendo dependente apenas de um “sistema” implantado pelos grupos que detêm o poder. Mas a situação é muito mais complexa...

Em pesquisas, foi notado que, tal como nos casos das pesquisas sobre preconceito racial, todos consideram o preconceito indesejável, mas em situações concretas especificas todos se revelam racistas. Ora, o que o estudo do “sabe com quem está falando?” permite realizar é a descoberta de uma espécie de paradoxo numa sociedade voltada para tudo o que é universal e cordial, a descoberta do particular e do hierarquizado. E essa descoberta se dá em condições peculiares: há uma regra que nega e reprime seu uso. Mas há uma prática igualmente geral que estimula o seu emprego.

Pesquisa universitária sobre o “sabe com quem está falando?”:

Todos os informantes da pesquisa indicavam que eram inúmeras as situações em que se podia usar o “sabe com quem está falando?”, mas era evidentemente possível especificar momentos típicos, quando a fórmula seria empregada. Em uma escala de importância, o uso do “sabe com quem está falando?” submete-se geralmente no indivíduo quando:
a) Sentir sua autoridade ameaçada (ou diminuída)
b) Desejar impor de forma cabal e definitiva seu poder
c) Inconsciente ou conscientemente perceber no seu interlocutor uma possibilidade de inferiorizá-lo em relação ao seu status social
d) For pessoa interiormente fraca ou que sofre de complexo de inferioridade
e) O interlocutor, de uma forma ou de outra, é percebido como ameaça ao cargo que ocupa

Fica assim revelada uma enorme preocupação com a posição social e uma tremenda consciência de todas as regras (e recursos) relativas à manutenção, perda ou ameaça dessa posição. Isso, portanto, leva à aplicação do “sabe com quem está falando?” de forma intensa na sociedade.

Os costume e praxes estabelecidos pela primeira classe da sociedade servem de modelo a todas as outras, cada uma das quais, por sua vez, estabelece seu código próprio, a que todos os seus membros são obrigados a obedecer. Assim, as regras de polidez formam um complexo sistema de legislação, difícil de ser dominado perfeitamente, mas do qual é perigoso para qualquer um desviar-se, por isso, os homens estão constantemente expostos a infligir ou receber, involuntariamente, afrontas amargas. Por isso aqui, o “sabe com quem está falando?” é sim, AUTORITÁRIO. Assim, tem o peso de uma lei, com seu conjunto formando uma legislação.

A utilização do “sabe com quem está falando?” é extensa. Não existem o que podemos chamar de “posição social geral”, com todos os “inferiores estruturais” mencionados dizendo que não tinham a menor idéia do emprego da expressão e que tomavam como uma simples pergunta a ser feita quando alguém desejava se dar a conhecer. E havia também subalternos que tinham recebido e usado o “sabe com quem está falando?”, muitos frisando como uma espécie de ponto de honra o fato de nunca terem recebido tala admoestação. O mesmo ocorre com as crianças. Deste modo, são fartos os exemplos do empregado usando o ritual de afastamento do seguinte modo: “Sabe com quem está falando? Eu sou o motorista do Ministro!”. Essas são as reações verticais intensas... O poder da identificação vertical é proporcional à “altura social” do dominante. Quanto mais alta, mais ganha impacto o “sabe com quem está falando?”. As crianças também usam, ou você nunca ouviu: “Sabe com quem está falando? Sou o filho do fulano!”.

Esses casos revelam que os inferiores estruturais não deixam de usar o “sabe com quem está falando?”, que não é exclusivo de uma categoria, grupo, classe ou segmento social. LOGO, É DEMOCRACIA.

Então, ao lado da perspectiva compensatória e complementar que busca (mas nem sempre obtém) a igualdade, temos a atitude hierarquizante que diferencia os iguais. O sistema (Estado) iguala num plano e hierarquiza no outro, o que promove uma tremenda complexidade classificatória, um enorme sentimento de compensação e complementaridade, impedindo certamente a tomada de consciência social horizontal, fortalece a vertical. É geralmente mais fácil (muito mais) a identificação com o superior do que com o igual, geralmente cercado pelos medos da inveja e da competição, o que, entre nós, dificulta a formação de éticas horizontais.

O “sabe com quem está falando?”, então, por chamar a atenção para o domínio básico da pessoa (e das relações pessoais), em contraste com o domínio das relações impessoais dadas pelas leis e regulamentos gerais, acaba por ser uma fórmula de uso pessoal, desvinculada de camadas ou posições economicamente demarcadas. Todos têm o direito de se utilizar do “sabe com quem está falando?”, e sempre haverá alguém para recebê-lo...

No “sabe com quem está falando?” e nas outras VARIANTES (início do texto), nota-se que a maioria dessas expressões assumem uma forma interrogativa, o que, no Brasil, surge como um modo evidentemente não cordial, pois em nossa sociedade, a indagação está ligada ao inquérito, forma de processamento jurídico acionado quando há suspeito de crime ou pecado, de modo que a pergunta deve ser evitada. Sem a interrogação, a vida social parece correr no seu fluxo normal. A pergunta pode configurar uma tentativa de tudo revolucionar. Por isso, somos socializados aprendendo a não fazer muitas perguntas, desde a escola, já que a pergunta parece muitas vezes um ato “agressivo”.

Diante da lei geral e impessoal que igualava juridicamente, o que fazia o membro dos segmentos senhoriais e aristocráticos? Estabelecia toda uma corrente de contra-hábitos visando demarcar as diferenças e assim retomar a hierarquização do mundo nos domínios onde isso era possível
Somos muito mais substantivamente dominados pelos papéis que estamos desempenhando do que por uma identidade geral, que nos envia às leis gerais, portanto, na medida em que as marcas de posição e hierarquização tradicional, como a bengala, as roupas de linho branco, os gestos e maneiras, o anel de grau e a caneta-tinteiro no bolso de fora do paletó se dissolvem, incrementa-se imediatamente o uso da expressão separadora de posições sociais para que o igualitarismo formal e legal, mas evidentemente cambaleante na prática social, possa ficar submetido a outras formas de hierarquização social.

Ou seja, não adianta a lei tentar igualar, pois a sociedade cria subdivisões sociais. A lei apenas nos separa materialmente...

Desta forma, reagimos de modo radicalmente diverso dos americanos diante da esmagadora igualdade jurídica que veio com a Abolição da escravidão em ambos os países. Lá, criou-se imediatamente um contra-sistema legal para estabelecer as diferenças que haviam sido legalmente abolidas; era o racismo em ideologia. No Brasil, porém, a esfera em que as diferenças se manifestam foi a área das relações pessoais, um domínio certamente ambíguo porque permitia hierarquizar na base do “sabe com quem está falando?”, e deixava os flancos abertos para escolhas pessoais e múltiplas classificações. Preferimos utilizar o domínio das relações pessoais – essa área não atingida pelas leis, como local privilegiado para o preconceito que, entre nós, como têm observado muitos pesquisadores, tem um forte componente estético (ou moral) e nunca legal.
 
DAMATTA, Roberto. Canaviais, malandros e heróis. Rio de Janeiro, 1994.

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