As Itálias brasileiras
Em recente passagem pelo país, o professor Angelo Trento conversa sobre os movimentos migratórios entre Itália e Brasil
Angelo Trento
In:As Itálias brasileiras
Em uma visita à cidade de São Paulo, Angelo Trento, professor aposentado da Universidade de Napoli e um dos maiores especialistas em 'imigração italiana no Brasil', concedeu uma entrevista à Revista de História. Nesta conversa, o estudioso descreveu as principais fases do movimento migratório da Itália para o Brasil, identificou alguns fatores que levaram à construção do sentimento de italianidade deste lado do Atlântico e também apontou quais foram as áreas que mais atraíram a mão-de-obra estrangeira. Abaixo, a conversa com o pesquisador.
Revista de História: É possível descrever as fases do movimento migratório da Itália para o Brasil? Por exemplo, quando começa a grande migração?
Angelo Trento: Para o Brasil, a imigração italiana começa, a grosso modo, por volta da metade da década de 1870. É uma imigração que adquire características de massa – a partir do começo dos anos 1880 até 1902. Nesta data, o governo italiano proíbe, através do chamado decreto Prinetti, à época ministro italiano das relações exteriores, a emigração com viagem gratuita de grupos italianos, o que acontecia sempre no caso do Brasil – era comum se pagar a viagem aos imigrantes, sobretudo àqueles disponíveis para se estabelecer nas áreas agrícolas; seja nas de colonização do Sul ou nas fazendas de café do Sudeste. Então, o grosso da emigração italiana é até 1902, mas ela continua até a Primeira Guerra Mundial, com resíduos ainda na década de 1920. Nos anos 1930, há uma queda significativa, devido à crise de 1929 e à política imigratória do fascismo, mais restritiva, com intuito de assegurar na pátria os italianos. A convicção da época era que número significava potência. Portanto, quanto mais moradores o país tivesse, maior seu peso no campo internacional. Por outro lado, nessa época, muitos emigrantes foram direcionados pelo regime de Mussolini para suas colônias africanas. Uma retomada da emigração acontece em 1946, após a Segunda Guerra. Até 1960, cerca de cem mil italianos chegam ao Brasil. A partir de então, já não podemos mais falar de emigração no sentido próprio do termo: os retornos para a Itália frequentemente superam as chegadas ao Brasil, que ficam definitivamente abaixo de mil por ano.
RH: De quais regiões italianas e rumo a quais áreas brasileiras migraram essas pessoas, principalmente?
AT: Inicialmente, é preponderante a presença de vênetos (que provém da região de Veneza) no Brasil. As pessoas que chegavam aqui eram principalmente camponesas, já que a região é essencialmente rural. Os vênetos foram, em maior parte, para o Rio Grande do Sul, para onde migraram também muitos trentinos (da região de Trento) e lombardos (da Lombardia), principalmente até o fim do século XIX.
Revista de História: É possível descrever as fases do movimento migratório da Itália para o Brasil? Por exemplo, quando começa a grande migração?
Angelo Trento: Para o Brasil, a imigração italiana começa, a grosso modo, por volta da metade da década de 1870. É uma imigração que adquire características de massa – a partir do começo dos anos 1880 até 1902. Nesta data, o governo italiano proíbe, através do chamado decreto Prinetti, à época ministro italiano das relações exteriores, a emigração com viagem gratuita de grupos italianos, o que acontecia sempre no caso do Brasil – era comum se pagar a viagem aos imigrantes, sobretudo àqueles disponíveis para se estabelecer nas áreas agrícolas; seja nas de colonização do Sul ou nas fazendas de café do Sudeste. Então, o grosso da emigração italiana é até 1902, mas ela continua até a Primeira Guerra Mundial, com resíduos ainda na década de 1920. Nos anos 1930, há uma queda significativa, devido à crise de 1929 e à política imigratória do fascismo, mais restritiva, com intuito de assegurar na pátria os italianos. A convicção da época era que número significava potência. Portanto, quanto mais moradores o país tivesse, maior seu peso no campo internacional. Por outro lado, nessa época, muitos emigrantes foram direcionados pelo regime de Mussolini para suas colônias africanas. Uma retomada da emigração acontece em 1946, após a Segunda Guerra. Até 1960, cerca de cem mil italianos chegam ao Brasil. A partir de então, já não podemos mais falar de emigração no sentido próprio do termo: os retornos para a Itália frequentemente superam as chegadas ao Brasil, que ficam definitivamente abaixo de mil por ano.
RH: De quais regiões italianas e rumo a quais áreas brasileiras migraram essas pessoas, principalmente?
AT: Inicialmente, é preponderante a presença de vênetos (que provém da região de Veneza) no Brasil. As pessoas que chegavam aqui eram principalmente camponesas, já que a região é essencialmente rural. Os vênetos foram, em maior parte, para o Rio Grande do Sul, para onde migraram também muitos trentinos (da região de Trento) e lombardos (da Lombardia), principalmente até o fim do século XIX.
RH: Por que outras regiões italianas – tão pobres quanto a região de Veneza ou o Trentino - não produziram uma emigração para o Brasil tão maciça? Como acontecia a escolha da região de destino?
AT: Até 1902, a imigração italiana é sobretudo proveniente do Vêneto e, depois de 1902, torna-se cada vez mais significativa a componente meridional, principalmente da Campânia ou da Calábria. A partir de então, o movimento é diferente, pois mesmo que os emigrantes continuem sendo de origem rural, eles têm como objetivo se estabelecer nos centros urbanos, sobretudo para exercer atividades comerciais. No Brasil, o trabalho manual carregava a marca incômoda da escravidão. Na hora em que acontece a imigração de massa, a cidade se desenvolve, assim como o mercado de trabalho: ele ainda é magmático. O imigrado se encontra ali em uma posição favorável, porque não tem muita concorrência. Afinal, o escravo, mesmo após a abolição, não se dedica com continuidade a uma ocupação fixa - exatamente porque o trabalho manual disciplinado e regular traz a recordação da rígida disciplina escravista.
Este quadro acontece principalmente em São Paulo. Mas também em Minas e no Espírito Santo. Nestes estados, a presença dos imigrados nas cidades aumenta pela própria saída de muitos deles das fazendas onde trabalham, em busca de melhores condições de vida. No Rio de Janeiro, a imigração sempre foi urbana e muito precoce. A primeira leva de italianos para a antiga capital do Brasil foi a que seguiu Maria Tereza Cristina de Bourbon, na metade do século XIX. Desde então, há uma inserção dos italianos no plano comercial: artesanato, ourivesaria...
RH: Por que escolhiam o Brasil?
AT: A viagem era paga, e os mais pobres vinham para o Brasil. Quem tinha mais recursos ia para a Argentina e, mais tarde, para os Estados Unidos (onde a imigração de massa começa mais tarde). Conforme o tempo vai passando, criam-se redes sociais por correio, entre italianos que já estavam aqui com moradores da Itália. As cadeias migratórias vão crescendo progressivamente e, muitas vezes, produzem chegadas oriundas de uma pequena aldeia italiana para um local específico no Brasil, como uma mesma cidade ou o mesmo bairro.
RH: Como as autoridades italianas regulamentaram a emigração? Houve formas de incentivo e formas de freio?
AT: A política migratória italiana sempre foi de laissez faire, ao ponto que até personagens importantes da política se queixaram da atitude permissiva do governo, que parecia incentivar a emigração para livrar a Itália de problemas sociais. A emigração, de certo modo, era vista por muitos na Itália como uma válvula de escape diante de possíveis convulsões sociais, desde o século XIX.
A publicação do decreto Prinetti, em 1902, é resultado de uma campanha que existia há tempo na imprensa sobre as condições dos emigrados italianos nas fazendas cafeeiras do Brasil. Dizia-se que eles vivam em condições ruins, sobretudo em termos de liberdade individual, no sentido que a mentalidade escravista ainda vigorava. Ou seja, as medidas limitativas da liberdade do colono eram muito fortes para o indivíduo e sua família.
Isto fez com que, naquele ano, fosse feito um relatório sobre as condições de trabalho do colono no Brasil. Um funcionário do governo italiano veio para cá com este intuito. O relatório culminou no decreto Prinetti, que não chegou a parar a emigração, apenas a desacelerou - até porque, havia formas de burlar a fiscalização.
Tabela mostra fluxos imigratórios para o Brasil. Fonte: IBGE
RH: O que contribuiu para o fortalecimento do sentimento da italianidade entre os imigrantes no Brasil?
AT: Este discurso poderia ser feito para qualquer outra terra de destino da emigração, mas limitando-nos ao caso do Brasil, o sentimento de interiorização da identidade italiana era praticamente inexistente. O que determinou a aceitação de uma raiz comum foi, sobretudo, a ideia da alteridade. Ou seja, os emigrados eram vistos pela sociedade local genericamente como italianos. Então, eles mesmos começaram a se perceber como estrangeiros de uma única procedência territorial. A função das associações e das formas de vida coletiva foi muito importante: elas foram instrumentos fundamentais particularmente para os imigrantes urbanos. Podemos destacar as sociedades de mútuo socorro, que ajudaram estas pessoas quando não havia nenhuma política social voltada para elas.
Outro elemento importante foi a escola: na maioria das vezes, no Brasil, as escolas italianas eram primárias, geridas por associações, congregações religiosas ou por particulares. Isso contribuiu para a ideia de uma matriz comum.O crescimento de um sentimento de pátria mais profundo aconteceu progressivamente - sobretudo quando a Itália se tornou presente na cena internacional, em uma forma percebida como positiva pelos imigrantes. A guerra da Líbia, a Primeira Guerra e o fascismo fizeram com que aflorasse o sentimento de pertencimento nacional. Mussolini também contribuiu para dar a sensação de uma Itália mais forte, mais poderosa, mais moderna. Deu orgulho para muitos imigrados, sobretudo como revanche, perto de um passado no qual ele era visto como um pobre coitado, morto de fome.
Angelo Trento é um dos maiores pesquisadores de imigração italiana no Brasil
AT: Até 1902, a imigração italiana é sobretudo proveniente do Vêneto e, depois de 1902, torna-se cada vez mais significativa a componente meridional, principalmente da Campânia ou da Calábria. A partir de então, o movimento é diferente, pois mesmo que os emigrantes continuem sendo de origem rural, eles têm como objetivo se estabelecer nos centros urbanos, sobretudo para exercer atividades comerciais. No Brasil, o trabalho manual carregava a marca incômoda da escravidão. Na hora em que acontece a imigração de massa, a cidade se desenvolve, assim como o mercado de trabalho: ele ainda é magmático. O imigrado se encontra ali em uma posição favorável, porque não tem muita concorrência. Afinal, o escravo, mesmo após a abolição, não se dedica com continuidade a uma ocupação fixa - exatamente porque o trabalho manual disciplinado e regular traz a recordação da rígida disciplina escravista.
Este quadro acontece principalmente em São Paulo. Mas também em Minas e no Espírito Santo. Nestes estados, a presença dos imigrados nas cidades aumenta pela própria saída de muitos deles das fazendas onde trabalham, em busca de melhores condições de vida. No Rio de Janeiro, a imigração sempre foi urbana e muito precoce. A primeira leva de italianos para a antiga capital do Brasil foi a que seguiu Maria Tereza Cristina de Bourbon, na metade do século XIX. Desde então, há uma inserção dos italianos no plano comercial: artesanato, ourivesaria...
RH: Por que escolhiam o Brasil?
AT: A viagem era paga, e os mais pobres vinham para o Brasil. Quem tinha mais recursos ia para a Argentina e, mais tarde, para os Estados Unidos (onde a imigração de massa começa mais tarde). Conforme o tempo vai passando, criam-se redes sociais por correio, entre italianos que já estavam aqui com moradores da Itália. As cadeias migratórias vão crescendo progressivamente e, muitas vezes, produzem chegadas oriundas de uma pequena aldeia italiana para um local específico no Brasil, como uma mesma cidade ou o mesmo bairro.
RH: Como as autoridades italianas regulamentaram a emigração? Houve formas de incentivo e formas de freio?
AT: A política migratória italiana sempre foi de laissez faire, ao ponto que até personagens importantes da política se queixaram da atitude permissiva do governo, que parecia incentivar a emigração para livrar a Itália de problemas sociais. A emigração, de certo modo, era vista por muitos na Itália como uma válvula de escape diante de possíveis convulsões sociais, desde o século XIX.
A publicação do decreto Prinetti, em 1902, é resultado de uma campanha que existia há tempo na imprensa sobre as condições dos emigrados italianos nas fazendas cafeeiras do Brasil. Dizia-se que eles vivam em condições ruins, sobretudo em termos de liberdade individual, no sentido que a mentalidade escravista ainda vigorava. Ou seja, as medidas limitativas da liberdade do colono eram muito fortes para o indivíduo e sua família.
Isto fez com que, naquele ano, fosse feito um relatório sobre as condições de trabalho do colono no Brasil. Um funcionário do governo italiano veio para cá com este intuito. O relatório culminou no decreto Prinetti, que não chegou a parar a emigração, apenas a desacelerou - até porque, havia formas de burlar a fiscalização.
Tabela mostra fluxos imigratórios para o Brasil. Fonte: IBGE
RH: O que contribuiu para o fortalecimento do sentimento da italianidade entre os imigrantes no Brasil?
AT: Este discurso poderia ser feito para qualquer outra terra de destino da emigração, mas limitando-nos ao caso do Brasil, o sentimento de interiorização da identidade italiana era praticamente inexistente. O que determinou a aceitação de uma raiz comum foi, sobretudo, a ideia da alteridade. Ou seja, os emigrados eram vistos pela sociedade local genericamente como italianos. Então, eles mesmos começaram a se perceber como estrangeiros de uma única procedência territorial. A função das associações e das formas de vida coletiva foi muito importante: elas foram instrumentos fundamentais particularmente para os imigrantes urbanos. Podemos destacar as sociedades de mútuo socorro, que ajudaram estas pessoas quando não havia nenhuma política social voltada para elas.
Outro elemento importante foi a escola: na maioria das vezes, no Brasil, as escolas italianas eram primárias, geridas por associações, congregações religiosas ou por particulares. Isso contribuiu para a ideia de uma matriz comum.O crescimento de um sentimento de pátria mais profundo aconteceu progressivamente - sobretudo quando a Itália se tornou presente na cena internacional, em uma forma percebida como positiva pelos imigrantes. A guerra da Líbia, a Primeira Guerra e o fascismo fizeram com que aflorasse o sentimento de pertencimento nacional. Mussolini também contribuiu para dar a sensação de uma Itália mais forte, mais poderosa, mais moderna. Deu orgulho para muitos imigrados, sobretudo como revanche, perto de um passado no qual ele era visto como um pobre coitado, morto de fome.
Angelo Trento é um dos maiores pesquisadores de imigração italiana no Brasil
RH: Como a Itália de hoje se coloca diante dos italianos no exterior, sobretudo no Brasil?
AT: A Itália é favorável ao fato de ter uma sua consistente população no exterior. Até porque, há tempos, o país não é mais uma terra de emigração. O que acontece hoje é a transferência de mão de obra - com a saída de operários ou dirigentes de firmas italianas que são enviados para o exterior, para suas filiais. Ao mesmo tempo, há uma política favorável à aquisição da cidadania italiana dos descendentes. Visto que a Itália se tornou agora um país de imigração, e agora que a imigração criou uma mentalidade xenófoba, às vezes a utilização de mão-de-obra da América do Sul é vista de forma favorável. Porque mesmo não falando italiano, são descendentes de antigos moradores da península.
ANGELO TRENTO é professor aposentado de História da América Latina na Universidade de Napoli “L’Orientale” e autor de Do Outro Lado do Atlântico: Um Século de Imigração Italiana no Brasil, São Paulo, Nobel 1989.
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1902
AT: A Itália é favorável ao fato de ter uma sua consistente população no exterior. Até porque, há tempos, o país não é mais uma terra de emigração. O que acontece hoje é a transferência de mão de obra - com a saída de operários ou dirigentes de firmas italianas que são enviados para o exterior, para suas filiais. Ao mesmo tempo, há uma política favorável à aquisição da cidadania italiana dos descendentes. Visto que a Itália se tornou agora um país de imigração, e agora que a imigração criou uma mentalidade xenófoba, às vezes a utilização de mão-de-obra da América do Sul é vista de forma favorável. Porque mesmo não falando italiano, são descendentes de antigos moradores da península.
ANGELO TRENTO é professor aposentado de História da América Latina na Universidade de Napoli “L’Orientale” e autor de Do Outro Lado do Atlântico: Um Século de Imigração Italiana no Brasil, São Paulo, Nobel 1989.
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