O sentido da voz rouca das ruas




Época traz opinião de analistas sobre o movimento que tomou as ruas do Brasil
Como entender o que move milhares a protestar, na opinião de dez analistas convidados por Época

Os protestos que se sucederam em velocidade e proporções espantosas nas ruas do país deixaram um rastro de perplexidade no público - e dissolveram, como ácido, os lugares-comuns que pautavam, até então, o debate político no Brasil. Jovens apáticos e alienados? Pense duas vezes. Uma classe média de bem com a vida que leva? Nem pensar. A dimensão do que acontece nas ruas do Brasil provoca muitas incertezas, mas não deixa dúvidas de que algo vai muito mal no país. O que exatamente? Época convidou analistas para refletir sobre as possíveis respostas a essas e outras incertezas ecoadas nas vozes das ruas. Pode-se especular sobre as causas dos protestos, mas os comentários colhidos deixam claro que o rumo dessa onda - e o futuro do país - está em aberto, à espera da próxima manifestação. E da próxima. E da seguinte... A seguir, algumas das reflexões.

Roberto Romano – Filósofo, professor da Unicamp

"O Estado brasileiro se tornou dono da política. O Brasil tem um governo autoritário, que confia na propaganda; um Congresso que representa não o povo, mas suas lideranças políticas; e partidos que se multiplicam, sem ligação com a sociedade - apenas com líderes que fazem o diabo em troca de favores do governo. Até a UNE foi cooptada. A sociedade deu mais de 1 milhão de assinaturas para o projeto da lei Ficha Limpa - e o que o Congresso faz? Está pisando nisso, tentando mudar a lei. O Congresso está dizendo: "O Estado sou eu, vocês paguem impostos e calem a boca". É natural, então, que esses estudantes nas ruas tenham ojeriza à política e aos partidos. Esses jovens estão aprendendo a fazer política sem a tutela do Estado. É uma espécie de rompimento"

Fernando Abrucio – cientista político, professor da FGV

"O Movimento Passe Livre, que iniciou as manifestações, tem membros ligados a pequenos partidos. Mas o MPL é minoria hoje. A maioria dos manifestantes é desorganizada. Essa parte dos manifestantes, que faz discursos contra a política, cresceu porque o poder público se recusou a dialogar. Foi um erro. Há tempos esses movimentos querem falar. Os movimentos sociais arrefeceram desde o governo Lula, passaram a olhar apenas para o próprio umbigo. O governo Dilma se distanciou deles. O poder público não entendeu que a vida está melhor, o desemprego é baixo, mas o dia a dia nas grandes cidades beira o insuportável. O acesso a bens e serviços públicos está difícil e caro"

Carlos Guilherme Mota – Historiador, professor emérito da USP

"O Brasil, apesar das aparências, vive o que o educador Anísio Teixeira chamava de "miséria farta". Vive também uma aparência de República, quando, na verdade, o sistema político se liquefez. Quando se chega ao ponto em que o povo não se identifica mais com o sistema político e começa a haver manifestações, a saída histórica é a reformulação. Aqui, seria a convocação de uma Assembleia Constituinte, onde poderia haver representantes desses movimentos que estão nas ruas. O novo está se apresentando. As elites políticas brasileiras, praticamente iletradas, não perceberam. A presidente Dilma Rousseff poderia convocar uma assembleia e abrir discussões sobre novos modelos políticos para o país"


Maria Rita Kehl – Psicanalista, membro da Comissão Nacional da Verdade

"Nos últimos dez anos, as eleições de Lula e Dilma levantaram esperanças, especialmente nos jovens. Mas o modo de fazer política não mudou: continuamos a nos escandalizar com episódios de corrupção. Isso foi deixando a sociedade num estado depressivo. O que nos leva a sair dessa expressão depressiva é essa raiva que eclodiu, a partir das manifestações pela revogação do aumento de tarifas em São Paulo, mais especificamente da reação da polícia a essas manifestações. O que vemos não é apenas indignação - passageira. Vemos uma dor social, provocada pela injustiça. A juventude que está na rua não tem consciência disso. Está lá porque quer transformar essa sensação"

Eduardo Giannetti – Economista, autor dos livros Felicidade e Autoengano

"Existe uma correlação entre participação cívica e o nível de felicidade de uma população. No Brasil, esse engajamento é pequeno. Espero que esses protestos sejam o início de uma mudança, não apenas um desabafo. Por trás desses manifestos está a insatisfação com os serviços públicos oferecidos num país em que a carga tributária é altíssima: 36%. O aumento da passagem de ônibus é somente a parte mais visível dessa insatisfação. A inflação também incomoda. A política de represar o aumento das tarifas públicas para ajudar a segurar a inflação, depois realizar aumentos expressivos de uma só vez, assusta a população. A sensação de bem-estar advinda do aumento da renda ficou para trás, em 2011 e 2010"

David Fleischer – Cientista político, professor da Universidade de Brasília

"O motivo das manifestações é a oportunidade que surge com a Copa das Confederações. O mundo inteiro está assistindo. A questão dos 20 centavos foi só um pretexto. Ao final da Copa das Confederações, veremos um esvaziamento. Com a atenção despertada pela Copa do Mundo no ano que vem, os manifestos serão ainda mais intensos. Marina Silva pode se favorecer, porque não está ligada a nenhum partido tradicional, a nenhum no poder. Os deputados e os senadores ainda não entendem o que está se passando. E de fato difícil, porque não é uma mobilização tradicional, com líderes constituídos. É uma manifestação anárquica, que se organiza por meio das redes sociais. O "pibinho" e a inflação também ajudam a fortalecer os protestos"

Rony Rodrigues – Publicitário, presidente da agência Box 1824

"O jovem de hoje se organiza em rede. As diversas perspectivas são colocadas na linha do tempo do Facebook e formam uma consciência coletiva, descentralizada e sem hierarquia. Além de mobilizar os jovens a ir para as ruas, esse ativismo permite que mesmo aqueles que ficam em casa também contribuam disseminando informação. O jovem de hoje é pragmático, realista. Ele quer promover mudanças no que afeta seu cotidiano. Esse jovem sempre teve vontade de fazer microrrevoluções. Desde 2010, já vinham ocorrendo passeatas isoladas, como pela construção do metrô em Higienópolis ou contra o (deputado Marco) Feliciano. Como o aumento na tarifa do transporte afeta todo mundo, foi o estopim para todos irem para as ruas"

Alberto Almeida – Cientista político, pesquisador do Instituto Análise

"Os protestos no Brasil são resultado de duas coisas: a melhoria das condições de vida e a perda de respeito da população em relação aos políticos. Quando a vida melhora, o povo se comporta como no ditado: "Dá a mão, quer o braço". A condição econômica melhorou com o aumento de consumo, agora querem mais - mas não respeitam mais os políticos. A visão hierárquica de mundo, do "Você sabe com quem está falando?", perdeu legitimidade. Os manifestantes querem melhor uso dos recursos públicos e mais austeridade na vida dos políticos. Não se trata de uma demanda romântica, mas também não é algo que possa ser atendido da noite para o dia. Os políticos, todos eles, dariam um bom sinal para a população se tomassem medidas que resultassem em cortar mais que gordura: cortar a própria carne"

José Augusto Guilhon Albuquerque - Sociólogo, professor da USP, pesquisador da Unicamp

"Dois pontos unificam essas manifestações. O primeiro é o temor da volta da inflação, representado pelo aumento nas tarifas do transporte. O segundo é o sentimento de que há uma enorme discrepância entre aquilo com que cada um contribui e o que recebe de volta do poder público. Essa insatisfação aparece nos pedidos por qualidade de serviços, como os cartazes que exigem hospitais com padrão Fifa. Para um movimento popular avançar politicamente, precisa de ideias, identidades e opositores. As ideias já estão lançadas. As identidades ainda não estão sólidas, não há líderes firmes, mas isso ainda aparecerá. O papel de opositor ninguém quer assumir. Neste momento há duas atitudes possíveis para os governantes: esperar e apostar que o movimento se canse ou chamá-lo ao diálogo"

Denis Rosenfiel – Filosofo, professor da UFRGS

"Há uma mensagem implícita em todos os atos e bandeiras que têm sido levantadas nas últimas semanas. Ela pode ser formulada da seguinte maneira: "Quem paga?". Quem paga o aumento da tarifa de ônibus? Quem paga o mensalão? Quem paga os estádios da Copa das Confederações e a Copa do Mundo do próximo ano? Quem paga uma educação pública de baixa qualidade? Quem paga por um sistema público de saúde precário? Note-se que todas essas bandeiras estiveram presentes em manifestações por todo o país, onde o "pagamento" da tarifa de ônibus se traduziu pelo "pagamento" de todos os problemas sociais que afligem a vida dos cidadãos brasileiros. E, aqui, nenhuma instância do Estado se encontra a salvo. Todas sucumbem a essas formas de "pagamento"


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