Conciliando ciência e religião

Aprofundando o nosso conhecimento sobre a emoção e a razão este texto de Marcelo Gleiser é muito pertinente.
Publicado pela FOLHA de São Paulo em 25-6-2006 ainda é muito atual. Vale a pena conferir




A função da ciência não é atacar Deus, mas oferecer uma descrição do mundo mais completa 

Para muitos, ciência e religião estão permanentemente em guerra. Desde a famosa crise entre Galileu Galilei e a Inquisição, no século 17, quando o cientista foi forçado a abjurar sua convicção de que o Sol e não a Terra era o centro do cosmo, razão e fé aparentam ser incompatíveis. Aos crentes, a religião oferece não só apoio espiritual em momentos difíceis e uma comunidade fraterna e acolhedora mas também respostas à questões de caráter fundamental e misterioso, como a origem do Universo, da vida ou da mente.
Na sua maioria, as respostas são relatadas em textos sagrados, escritos por homens que recebem a sabedoria por meio de um processo de revelação sobrenatural, de Deus (ou dos deuses) para os profetas. Para as pessoas de fé, é absurdo contestar a veracidade desses textos, visto que são expressão direta da palavra divina.
A atitude descrita acima faz parte da ortodoxia de muitas religiões. Nem todos os crentes adotam uma posição tão radical com relação à veracidade, ou literalismo, dos textos sagrados. Uma posição mais comum é interpretar os textos como representações simbólicas, um corpo de narrativas dedicadas a construir uma realidade espiritual baseada em certos preceitos morais. Galileu criticou os teólogos católicos, dizendo que a função da Bíblia não é explicar os movimentos dos planetas mas como obter a salvação eterna. ("Não é explicar como os céus vão, mas como se vai para o Céu.")
A adoção de uma postura menos ortodoxa permite uma visão de mundo menos radical, onde a religião e a ciência podem viver em harmonia, cada uma cumprindo sua missão social. O conflito entre as duas não é, de forma alguma, necessário. Basta saber distinguir o que uma ou outra pode e não pode fazer. Isso serve também aos cientistas, em especial aos que têm atitudes ortodoxas contra a religião.
Acho extremamente ingênuo imaginar ser possível um mundo sem religião. Ingênuo e desnecessário. A função da ciência não é tirar Deus das pessoas. É oferecer uma descrição do mundo natural cada vez mais completa, baseada em experimentos e observações que podem ser repetidos ou ao menos contrastados por vários grupos. Com isso, a ciência contribui para aliviar o sofrimento humano, seja ele material ou de caráter metafísico.
A distinção essencial entre ciência e religião está no que cada uma delas pressupõe ser a natureza da realidade. Enquanto a religião adota uma realidade sobrenatural coexistente e capaz de interferir com a realidade natural, a ciência aceita apenas uma realidade, a natural. Aqui aparece a razão principal do conflito entre as duas. Para a ciência não é preciso supor que o que ainda não é acessível ao conhecimento necessite de explicação sobrenatural. O que não sabemos hoje pode, em princípio, vir a ser explicado no futuro. Em outras palavras, a ciência abraça a ignorância, o não-saber, como parte necessária de nossa existência, sem lançar mão de causas sobrenaturais para explicar o desconhecido.
Sem dúvida, esse tem sido o seu caminho: explicar de forma clara e racional um número cada vez maior de fenômenos naturais, do funcionamento dos átomos à formação de galáxias e a transmissão do código genético entre os seres vivos. As tecnologias que tanto definem a vida moderna, da revolução digital aos antibióticos, dos meios de transporte ao uso da física nuclear no tratamento do câncer, são fruto desse questionamento. Negar isso é tentar olhar para o mundo de olhos fechados.
A conciliação entre ciência e religião só ocorrerá quando ficar claro o papel social de cada uma. Negar uma ou outra é ignorar que o homem é tanto um ser espiritual quanto racional.


MARCELO GLEISER é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"

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