História: O Céu e o inferno - O monge o o samurai
por Fabio Lisboa
A vida do samurai andava um inferno.
Dúvidas sobre o Bushido lhe atormentavam. Para ter paz, precisaria aprender mais sobre um dos princípios deste código dos samurais.
O
guerreiro precisava aprender sobre compaixão. Ele nunca teria paz se
vivesse apenas pela coragem e disciplina. A compaixão era um dos valores
que norteavam o caminho do cavaleiro, o Bushido[1].
Aquele
samurai se perguntava se não teria desviado do caminho ao cortar
cabeças indefesas e não ajudar inimigos em dificuldades. Teria ele
perdido o poder da compaixão? Teria ele perdido a honra? Por que sua vida estava um inferno e como seria alcançar o céu?
As
dúvidas levaram o guerreiro em busca de um local sagrado – na esperança
de encontrar um mestre que o tirasse de seu inferno e lhe ensinasse o
que era o céu. Enquanto ia se aproximando do templo zen budista os
lavradores se afastavam daquele homem. Chegando lá, o samurai exigiu
ser levado à presença do monge chefe. Este ensinava na cozinha. O homem
armado de espada ouviu os ensinamentos do outro, armado de uma colher. O
mestre[2]
ensinava os aprendizes sobre a importância de transformarem em prática o
pensamento zen. A importância de praticarem de fato o que quer que
fossem ensinar. O mestre zen parou de falar e com sua colher remexeu
cuidadosamente o cozido de legumes na panela. Voltou a falar do aspecto
sagrado de cada ação cotidiana, que a prática da preparação diária do
alimento é a mesma prática do caminho da iluminação.
“Pense que as panelas são você mesmo... Veja que a água é a sua própria vida...”[3]
E voltou a mexer o cozido, borrifando temperos que ao caírem na panela exalaram vapores aromáticos...
Só
que o samurai não queria saber de prática de “mestre cuca” coisa
nenhuma! Ele não queria perder tempo da sua “busca espiritual” com
futilidades diárias como culinária. Rompeu o silêncio dos vapores:
- Mestre: quero que me ensine sobre a compaixão. Quero que me ensine sobre o céu e o inferno.
O monge olhou longamente para o samurai. Reparou em seu calçado enlameado, em sua espada embainhada, em sua mente inquieta.
-
Você não vai encontrar o que busca. Como posso ensinar a pureza e a
beleza da compaixão a um homem com a bota, a espada e a mente
completamente sujas? Sua presença deixa este templo feio e sujo. Seria
melhor que saísse daqui agora!
O
sangue do samurai se aqueceu mais rápido do que as panelas e em dois
movimentos ele desembainhou a espada e preparou o ataque certeiro que
faria rolar a cabeça daquele monge que desrespeitava a honra de um
cavaleiro que, por sua vez, se afundaria ainda mais em seu inferno.
O
monge permaneceu parado e quieto, mirando o outro com profundidade. Com
a espada viajando pelo ar a poucos centímetros do seu pescoço, disse:
- Espere. Agora você já sabe o que é o inferno. Isto é o inferno!
O astuto espadachim fez parar sua katana[4]
antes dela atravessar a pele. Ficou espantado com a coragem e dedicação
do mestre ao ensinar. O monge colocava suas palavras e sua própria vida
à serviço do outro. Entendeu que a sua maior desonra não seria receber
um insulto e sim praticar um ato violento.
O desejo de paz invadiu o guerreiro. Uma onda de compaixão o arrebatou.
O monge, enfim, enxergou o olhar iluminado e compassivo do samurai:
- Agora você já sabe o que é compaixão. Isto é o céu.
Recontada por Fabio Lisboa
in: http://www.contarhistorias.com.br/2010_11_01_archive.html
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